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Wednesday, August 5, 2020

UH Entrevista: Dona Neuma

















































































UH Entrevista: Dona Neuma
Última Hora
11 de fevereiro 1983

A casa todos sabem onde fica: logo depois do Buraco Quente. Afinal, dona Neuma tem fama que ultrapassa os limites do Morro de Mangueira, sede da famosa escola. Foi em seu ambiente que ela falou com Haroldo Zager, Eduardo Lacombe, Mauro Dias, Salete Lisboa e Francisco Duarte. Falou com saudades dos primeiros tempos da Verde e Rosa, da qual seu pai foi o primeiro presidente. E, com muita mágoa, reclamou do isolamento a que é submetida pela atual diretoria. Logo ela, a Primeira Dama do Samba, uma das muitas musas de incontáveis musicas que ressaltam o samba da Estação Primeira. E mostrou-se temerosa com o futuro daquele bloco fundado por Cartola.


D. NEUMA - Ninguém gosta do
“verão... Eu adoro! A gente anda nua,
fica à vontade, bebe água, bebe cerve-
ja, dá caganeira, ninguém liga... (ri-
sos) Não que às vezes a gente tem
dor de barriga, fica todo mundo “é
disenteria!”, “à senhora tá bebendo
água demais!” Mentira, é cerveja de-
mais, que no verão a gente não esco- .
lhe nem o rótulo, quer é o líquido
gelado. Ela desce, desliza...

MD - A senhora tá com quantos
anos?


D. “NEUMA — 60. Nasci em 8 de
maio de 22, em Madureira.

HZ - Como foi que Madureira per-
deu a senhora pra Mangueira?


D. NEUMA - Papai e mamãe eram
do Estácio, moravam na Frei Caneca,
numas casas cabeça de porco. Era
bom morar assim: vizinho morava
dentro de casa um do outro. Minha
avó jogava no bicho, então era muito
conhecia no bairro.

MD - Quanto irmãos vocês eram?

D. NEUMA - Éramos quatro meni-
nas, morreu uma. Sou a mais velha.
Fui a primeira filha, a primeira neta, a
primeira sobrinha, .a primeira afilha-
da, sempre fui a primeira.

EL - Hoje é a Primeira Dama da
Mangueira.


D. NEUMA - Nem senti isso, já
tava acostumada. Mas depois minha
mãe mudou pra Rua Dona Minervina.
E quando meus pais casaram foram
morar em Madureira. Um ano depois,
ó eu aí, cheguei, gritando saravá!

FD - Só um detalhe: a Rua Miner-
vina ficava na boca da zona, né?


D. NEUMA - Ih! Dona Minervina
esquina de Pereira Franco! Tinha um
cinema ali que minha mãe frequlenta-
va...
FD - Cine Centenário, ao lado da
fábrica de cerveja...


D. NEUMA - Era uma zona negra.
Minha mãe foi criada ali no meio
daquelas mulheres, que tomavam
conta dela como se fosse filha. Minha
mãe não tinha pai nem mãe, mas era
muito bem cúidada, ia ao cinema,
tinha roupinhas bonitinhas. Morava
numa casa de família. Foi minha mãe
que me ensinou a se dar bem com
todo mundo, sem saber quem é quem,
de onde vem e vai pra onde, que ter
amigos é a coisa mais importante da
vida. Amigo pra mim vale mais que
milhões de cruzeiros no bolso. A coisa
mais gostosa do mundo, gente, é ter
amigos!

HZ - Mas antes disso, vamos passar
por Madureira.


D. NEUMA - Madureira, morei
pouco. Nasci na Rua João Vicente.
Onze meses depois, já morava em
Piedade, do lado da Avenida Suburba-
na. Depois fomos morar em Terra
Nova, o reduto de sambistas naquela
época. Agora aquilo chama Pilares.
Minha primeira escola foi a Mara-
nhão. Ali aprendi as primeiras letras.
Era uma escola simples, a gente ia de
tamanco, nossa pasta era uma caixi-
nha de biscoito Aymoré, com cader-
no, lápis e uma merenda: pão com
manteiga. A vida já era ruim pra
gente. Papai trabalhava no Departa-
mento de Aparelhamentos Escolares.

MD - Qual o nome completo do seu
pai? E da sua mãe?


D. NEUMA - Saturnino Gonçalves.
Forestalina dos Santos Gonçalves.

SL - Como você veio parar na
Mangueira?


D. NEUMA - Por causa de samba,
né. Papai, mesmo morando no Está-
cio, já frequentava a Mangueira. Pa-
pai levava mais tempo no morro do
que com a gente em casa. Quase não
víamos ele.

FD - Tinha uma segunda família na
Mangueira?


D. NEUMA - Não, papai não tinha
mulher fixa, assim pra viver. Tinha
muito respeito à minha mãe, mas
dava suas castigadazinhas. Não esco-
lhia cara. Me lembro que ele tinha
uma mulher no morro, que bebia
cachaça, tinha a boca toda arrebenta-
da de quando o fígado dá pra estou-
rar. Papai beijava aquêla mulher...
(faz cara de nojo e depois ri bastante)
Quando ele chegava em casa, que a
gente tomava a bênção, ele vinha
beijar a gente não deixava.

HZ - Sua mãe sabia dessas escapu-
lidas?

D. NEUMA - Mamãe era meio va-
lente, sabe. Quando desconfiava, não
brigava com ele, mas ficava falando
"eu mató uma”, e ele tinha medo,
sábia que ela lidava bem com a ma-
chadinha, foi criada em Macaé, negó-
leio de rachar lenha. Ela pegava aque-
la machadinha afiadinha: “arrebento
uma nega dessas! Papai era um ho-
do muito calmo, e ficava com me-
do.

HZ - Sua mãe chegou a dar corrida
em alguém?


D. NEUMA - Muito! Deu até numa
chamada Sinhá Velha, que não era
fácil. E o negócio nem era com ela,
era com uma tal de Ursulina, mas
Sinhá Velha é que levou a culpa.

HZ - Você lembra da Revolução de
30?

D. NEUMA - A Revolução de 30
marcou muito a nossa família. Sem-
Apre vivemos tipo comunidade, e como
nessa revolução morreram muitos ra-
pazes vizinhos, minha mãe ficou cho-
cada, querendo sair dali. Dizia: “cada
vez que chego no portão vejo um
desses meninos mortos passar.” Mu-
damos pra Rua Lorena, num barraco
mixuruca mesmo, de zinco. Um dia
deu um vento e o telhado foi lá pra
casa do cacete, aí mamãe quis sair de
lá também. Tava acostumada com a
casa bonita que a gente morava, né.
Viemos morar na Rua Marechal
Aguiar, em São Cristóvão. Já era
altura de 1931. Lá, fiquei muito doen-
te, mamãe atribuiu à friagem da casa,
e mudamos pro Pedregulho. Lá, foi
papai quem ficou muito doente, e
aconteceu a vinda pra Mangueira.

MD - Quando foi isso?

D. NEUMA - 32 pra princípio de 33.
Papai ficou tuberculoso, não tinha
tratamento na época, tomou muito
suco de erva, mas não adiantou nada.
Era novo, tinha 34 pra 35 anos, e nós
perdemos tudo, mas ficamos tranqui-
los, com sorrisos até aqui.



























SL - Quando seu pai fundou a
Mangueira, vocês já moravam aqui
(na Mangueira)?


D. NEUMA - Não, a gente morava
em Terra Nova. Isso foi em 28 de abril
de 1928.

SL — Que memória, heim!

D. NEUMA - Claro, era aniversário
da minha irmã. A gente tava esperan-
do com a mesa posta, pra cantar os
parabéns, e nada de papai chegar.
Ficamos tristes, mas quando ele che-
gou de manhã cedo, muito bêbado,
falou assim:-“não vim mas trouxe um
presente." Mamãe, que sabia que ele
tava sempre duro, falou: “que presen-
te é esse?” “Eu trouxe pra vocês a
Escola de Samba Estação Primeira,
um bloco que nós fundamos, e onde
vocês vão participar”.

EL - Quem escolheu esse nome?

D. NEUMA - Cartola. Ele viu que a
Mangueira era a primeira estação
depois da Central do Brasil. Papai foi
logo escolhido o primeiro presidente,
por ser o mais calmo e pacato.

HZ - Imagine os outros! (risos)

D. NEUMA - Marcelino, por exem-
plo, dava rasteira, rabo de arraia... Foi
capataz lá em Santa Cruz. Olha, sei
que a Escola foi fundada na casa da
Joana Velha com seu Euclides, pai de
João Cocada, lá em cima, no Buraco
Quente. Tavam lá: meu pai, Cartola,
Marcelino, seu Euclides... Carlos Ca-
chaça não estava na hora. Zé Ispineli
tava lá. Tinha outros dois que não me
lembro o nome. Só papai é que era de
fora.

FD - Ispineli não tinha terreiro no
Engenho Novo?


D. NEUMA - Mas tinha uma nega
na Mangueira. Ispineli era um ho-
mem bacana, sabia o dia que ia mor-
rer. Fez um samba e veio pra Man-
gueira, com o grupo de santo dele
todo, acordando o morro. Saltou em
Triagem, veio, e quando chegou na
ponte cantou: “bem que eu quero
esperar / mas existe um porém / sinto
minha memória cansada / Essa triste
melodia / serve de um último adeus /
adeus escola de samba / adeus, Man-
gueira, adeus. // Adeus escola de
samba, adeus / eu vou partir choran-
do / relembrando os versos meus /
que mais cedo ou mais tarde / é triste
e doloroso recordar // A orgia vai se
acabar / adeus, Mangueira...” Lindo,
todo mundo cantando isso, de madru-
gada...

HZ - Ele tinha noção do que la
acontecer?


D. NEUMA - Sabia que ia morrer
naqueles dias, como de fato aconte-
ceu.

HZ - Qual foi a primeira agitação
da Escola de Samba Estação Primeira?


D. NEUMA - No morro tinha muita
macumba, um monte de terreiros.
Cada terreiro vestia sua roupa de
santo e saia no carnaval. O bloco
carnavalesco fundiu todos esses blo-
cos, com as cores verde e rosa, dadas
por Cartola, para obrigar elas a fazer
uma fantasia própria, que roupa de
santo jamais ia ter verde nem rosa. O
padrão das baianas era saia rosa, O
pano da costa, camisinha e pano da
cabeça verde. Quem quisesse, botava
uma rendinha. O verde tinha que ser
bandeira e o rosa não era choque,
como é apora.

















FD - Como a hortênsia, que tem
uma combinação perfeita de verde e
rosa.
HZ - Esse desfile de carnaval era
uma coisa espontânea?


D, NEUMA - Não, teve um concur-
so promovido por Zé Ispineli em
Engenho de Dentro. A Portela tinha
muitos blocos, como a Vai Quem
Pode, Estácio tinha, Salgueiro, todos
nesse concurso. Nós ensaiávamos na
rua, e os turistas já vinham assistir ao
samba. Mangueira sempre foi impor-
tante pro turismo.

HZ - A senhora lembra como era a
composição da bateria?


D. NEUMA - Tinha uns 40 homens.
O surdo éra de papel, ou de couro de
gato. Botavam papel embaixo e pu-
nham fogo pra esquentar o instru-
mento, tá entendendo? Carregavam
jornal pro concurso pra poder es-
quentar na hora a bateria.

FD - Como era proibido entrar
bebida na praça, toda cuíca tinha um
preguinho por dentro, com um laço,
pra esconder lá a garrafa.


D. NEUMA - E nós levávamos uma
garrafa dentro das saias. Sem cacha-
ça não se fazia nada.

HZ - Tinha todos os instrumentos
que tem hoje?


D. NEUMA - Não, surdo era um só,
fazendo à marcação. O primeiro sur-
do que a Mangueira teve, de tarracha,
quem deu foi Sílvio Caldas. Antes era
barrica mesmo. Tinha cuíca, pandei-
ro, tamborim, reco-reco, agogó...

HZ - Tarol não?

D. NEUMA - Não. Quando começa-
ram a entrar essas coisas no samba,
reclamamos muito, dizendo que eram
muito barulhentos.

SL - A Mangueira é tradicional
pela sua marcação de bateria, né, que
sempre foi a mesma.


D. NEUMA - Agora querem mudar,
mas quando chega no concurso a
batida é uma só. O surdo é que tem
que dar o primeiro sinal.

HZ - Quem é que tirou essa batida?

D. NEUMA - Batiam atabaque na
macumba, e dali fizeram essa batida.

SL - Quem dirigiu foi sempre seu
Waldomiro?


D. NEUMA - Não, não tinha dire-
tor de bateria. Mangueira só tinha um
diretor que dirigia tudo: Cartola. Di-
retor de harmonia antigamente era
completamente diferente do diretor
de harmonia atualmente. Cartola ti-
nha um diapasão, então a voz das
pastoras entrava dentro da tonalida-
de que ele quisesse. Tirava a tonalida-
de dos homens, das mulheres e da
bateria. Cartola foi um dos melhores
diretores de harmonia que o samba
teve. Foi quem ensinou Paulo da Por-
tela. Tinha um coral que aonde ele
fosse, Mangueira era bem chegada.
Todo mundo quer escutar quem can-
ta bonito, certo, quem tem uma tona-
lidade. Nós cantamos até num navio,
regidos pelo Maestro Stokowski.

SL - Qual era a relação de Cartola
com Noel Rosa?


D. NEUMA - Noel era irmão de
cana do Cartola. Cartola era irmão do
Noel Rosa. Muita gente não conhece
a amizade que se estendia entre eles.
Noel era muito boêmio, e quando
queria descansar, dormir um pouco,
vinha pra Mangueira.

FD - Pra casa da Deolinda.
SL - Primeira esposa do Cartola.


D. NEUMA - Deolinda era tão boa!
Cortava saco de farinha e fazia umas
camisetas sem manga pro Cartola
vestir. Noel chegava, muito bêbado,
ela armava uma bacia d'água, dava
banho nele igual dando numa crian-
ça. Jogava polvilho na bucha: “coita-
dinho, tá tão magrinho!" Ele resmun-
gava: “deixa eu..." (risos) Depois bo-
tava ele na cama de colchão de crina,
debaixo de uma mangueira, e ele
dormia um sonão. Dava um caldo
com batata, e ele acordava bonzinho.
Aí ele ensaiava músicas com as crian-
ças. Cantavam hinos escolares, ensi-
nava música pra elas: “quem é você
que não sabe o que diz - Meu Deus do
céu, que palpite infeliz." Nós grava-
mos com ele aquela música: “pobre
de quem não sofreu nesse mundo / a
dor de um amor profundo / Eu vivo
bem sem amar a ninguém / ser infeliz
é sofrer por alguém.”

MD - O que era a comunidade de
Mangueira, em termos de condições
de vida, nesses anos 30, 40?


D. NEUMA - Nossos problemas
eram poucos naquela época. Sempre
tinham uns caras, cabeças fortes, que
tomavam conta. Seu Júlio, todo mun-
do respeitava mesmo. Não diziam pa-
lavrão na frente dele. Se alguém fa-
lasse (*) perto dele, levava um tapa
na cara. Não aceitava que nenhuma
crianças fizesse malcriação:

MD — Quer dizer que a comunidade
tinha líderes que disciplinavam, como
Geraldo Pereira no Morro de Santo
Antonio?


D. NEUMA - Quando vim morar
em Mangueira, quem mandava era a
família Matos, que tinha dinheiro,
eram donos de biroscas.

HZ - Tinha que buscar água na
fonte, né?


D. NEUMA - É, mas tínhamos um
registro lá embaixo que botava uma
água geladinha, que doía até o dente
na hora de beber. Nós sofríamos mui-
to, mas era um sofrimento gostoso,
ninguém reclamava.
 
HZ - Você estava falando da for-
mação da Mangueira, mas que nessa
época não moravam ainda aqui.
Quando foi mesmo que vieram pra
cá?


D. NEUMA - No dia 4 de novembro
de 1933. Papai dizia: “quero morrer
em Mangueira!” Insistia nisso. Ma-
mãe: “mas não vou morar num par-
dieiro!" "Não, mas quero morrer é
lá!" “Ah, mas eu não vou!" Af Cartola
saiu, procurou casa, achou essa, e
mudamos pra cá. Papai morreu no dia
29 de abril de 1935, dois anos depois.

HZ - Na escola, o que a senhora
fazia?

D. NEUMA - Era uma pastora,
fazia parte do coral. Ajudei a fazer a
campanha pra construir a primeira
sede. Nenhuma criança comia doce,
guardava o dinheiro pra comprar tijo-
lo. Até o pão a gente diminuía de
comer, pra comprar tijolo. Fizemos
um programa no Cassino Atlântico,
pra botar porta e janela.

HZ - Os intelectuais dizem que o
pessoal do morro passa fome pra
comprar sua fantasia, “cumé que po-
de”, que isso é “um absurdo”.


D. NEUMA - É mentira. Você acre-
dita que uma criança com fome joga
futebol o dia inteiro? Uma criança
com fome, ri? As crianças aqui são
bem alimentadas. O que não temos é
preconceito de roupa, usamos às ve-
zes roupas que os outros dão, porque
o bacana veste um vestido duas, três
vezes, depois joga num canto, dá pra
gente. Ninguém aqui passa fome. E
todo mundo estuda, o que é o princi-
pal.

HZ - Mas fazer uma fantasia não
implica em sacrifício?


D. NEUMA - Sacrifício nada, a
gente vai acumulando durante o ano.

SL - Durante algum tempo, a se-
nhora foi o banco das baianas da
Mangueira. Como funcionava isso?


D. NEUMA - Ah, elas guardavam
dinheiro comigo. Antes, não tinha
esse luxo que tem atualmente, não
tinha figuras de Debret nem de Ru-
gendas. Fazíamos aquilo que quería-
mos. A baiana era feita no sábado de
carnaval. Íamos na cidade, compráva-
mos seis metros de cetim, quatro rosa
e dois verde. Voltava pra casa e sen-
tava o pau. De noite a baiana tava
prontinha pra desfilar. O pior era
armar a saia de goma. Às vezes cho-
via e não tinha condições de secar.
Então pegávamos a cera, acendia o
fogo e...

HZ - Esquentava a baiana.

D. NEUMA - Ficava preta, fedendo
a fumaça... a gente queria era ir, não
ficava de jeito nenhum.

SL - Como a senhora vê a prepara-
ção da escola agora?


D. NEUMA - É diferente. Por
exemplo, tem escola de samba que faz
carnê. A Mangueira compra o tecido,
dá uma ajuda, e elas pagam a outra
parte. (pausa) Não gosto nem de falar
do agora, que é tão deprimente, tão
dolorido. O cara que aprende a fazer
um chapéu, ganha nos três dias de
carnaval pra comer durante um ano,
então esquece que carnaval não é pra
quem pode, é pra quem gosta, tá
entendendo. Tó fazendo uma campa-
nha pra Legião Brasileira de Assistên-
cia conseguir chapeleiras pra ensinar
nós do morro a fazer chapéu. Se
entrar em Mangueira, entra nas ou-
tras escolas. Tem que arranjar uns
artesãos pra ensinar os garotos a
fazer sapatos. Que tudo é a maior
bxploração, gente, fico louca de ver!
Um chapéu, Cr$ 15 mil!

MD - Virou uma indústria, né?


D. NEUMA - É uma indústria peri-
gosa! Hoje ele cobra 15 mil, você dá,
ano que vem ele tem vontade de -
cobrar 30 mil. Isso vai acabando com
o carnaval. Nós temos 30 numa ala.
Cada uma gasta 10 metros. Quanto
custa? Cr$ 5 mil o metro. Só dá pra
comprar 50 metros. Quando você vai
buscar o resto, acabou, ou então che-
gou, mas aquilo que era 5 mil passou
pra 8 mil. Acomponente, que sabia
que era 5 mil, diz que estamos rou-
bando. Todo mundo prejudica o car-
haval, ou sabendo, ou ingenuamente,
não sei,

MD - Quantas vezes vocês en-
saiam?

D. NEUMA - Olha, sabe o que
estragou os ensaios da escola de sam-
ba? Condução: a falta de ônibus de
madrugada. O sujeito vem pra ver um
samba, paga um ingresso, aluga uma
mesa, paga cerveja, arranja uma ne-
guinha pra dar uns beijinhos, tem que
pagar uma batatinha, quer fazer
agrado: o troco que ele tinha, já era.
Não tem dinheiro pra táxi.

HZ - Pessoal tem medo de vir a
ensaio na Mangueira porque no via-
duto, passou de determinada hora...

D. NEUMA - É mentira, não existe
isso. Quando vocês chegaram, viram
eEsa porção de carro parado aí na rua.
Todo dia fica esse mundo de carros do
IBGE. Gente do morro mesmo é que
toma conta, Não tem nada. Tem uns
que deixam a porta aberta, outros
deixam as chaves na mão da rapazia-
da, quando chegam encontram o car-
ro como estava.

FD - O IBGE inclusive funciona 24
horas.


D. NEUMA - Os que não têm carro
vão pela ponte pra tomar condução,
sem nenhum problema. O problema é
que não tem condução. Devia ter
ônibus de madrugada, ao menos quin-
ta, sexta e sábado, nesse período de
carnaval. A pessoa acaba sendo obri-
gada a ficar no samba até cinco horas
da manhã. Agora, assalto não tem.
Mangueira dificilmente dá assalto -
coisa que dá em toda parte do mundo
- porque malandro encontra aqui a
barra pesada dos PMs. Temos uns
PMs aqui que conhecem o morro.
Pisou gente que não é da área, os PMs
expulsam. Se bancou o valente, tem
que levar chumbo. Falam em arbitra-
riedade, mas machão tem que levar
chumbo mesmo. Precisamos de tran-
quiilidade. As pessoas acham que aqui
é reduto de marginal, mas quando
dão blitz no morro, aqui não acham.
nada. Todo mundo desce de manhã.
documentadozinho, com a marmiti-
nha debaixo do braço. Os PMs conhe-
cem cada beco. A 17 (17º Delegacia)
não conhece metade do que a PM
conhece, eles nem saltam, passam por
aqui direto.

HZ - Eu queria que a senhora
tontasse mais sobre os primórdios da
Mangueira. A senhora começou a fa-
lar de um concurso, que fol a primeira
vez que a Mangueira desfilou. Com
quem ela se defrontou?


FD - Posso esclarecer? Não foi
propriamente um confronto de blo-
cos, foi um confronto de samba, Não
havia escolas ainda. Só funcionava,
como escola, o Deixa Falar. Desceu o
pessoal do Estácio, com Ismael, o
pessoal da Portela, com Paulo da
Portela, Heitor dos Prazeres, o pes-
soal da Mangueira, e me parece que
veio um grupo da Tijuca, não sei se
Unidos da Tijuca ou Azul e Branca,
com Antenor Gargalhada. Era umã
festa íntima, onde cada um cantava
um ou dois sambas. Zé Ispineli, pes-
soalmente, rei do seu terreiro, esco-
lheu o samba da Portela como tendo
sido o vencedor naquela ocasião. Isso
foi, no dia 20 de janeiro. Em fevereiro,
no carnaval, ele próprio comprou uns
troféus “e entregou na Praça da Esco-
la Benjamim Constant, na-11 de Ju-
nho, o que corréspondia-hoje ao pa-
lanque do juri, o palanque central. O
desfile subia da Central do Brasil pela
Senador Eusébio, contornava a Praça
Onze duas vezes e descia pela Vis-
conde de Itaú. Esse é que era o desfile
da Praça Onze, que só foi disciplinado,
em 32, quando à famíla Rodrigues,
do- Mundo Esportivo, estabeleceu o
primeiro desfile organizado de esco-
las de samba.


HZ - E já tinha esse negócio da
Mangueira atrasar o desfile?


D. NEUMA - A Mangueira atrasou
o desfile em 1935, quando papai mor-
reu. Armaram a escola numa antiga
ponte, que quando fizeram a Getúlio
Vargas, fizeram essa ponte que inau-
guramos no peito, em 1930.

HZ - No peito? Como?

D. NEUMA - A ponte tava sendo
féita pra uma inauguração cheia de
pompa e festa. A gente tinha que
passar pela linha de trem, tinha sem-
pre gente morrendo, então fizeram
uma ponte que dava pra passar até
carro. Quando acabou a Revolução de
30, Getúlio Vargas ia subir num trem
de São Paulo, e queríamos ver ele, o
machão da época. Eu nem sabia quem
era, nem o que tinha feito, mas era
criança, e achava interessante o que
os adultos achavam. Então descemos
e arrombamos a ponte, Tiramos tudo,
inauguramos a ponte, e ficaram os
moradores todos lá em cima vendo
Getúlio Vargas-passar, tirando o cha-
peuzinho pra pente. Também no últi-
mo instante de vida dele, quando o
avião passou, o morro todo desceu e
foi pra lá acenar pra ele, dando adeus,
com lenços brancos.

MD - Nesse ano de 35, quando a
Mangueira atrasou, de quem era o
samba?


D. NEUMA - Carlos Cachaça: “Eu
tenho orgulho de ter nascido aqui no
Brasil / a paz que encerra no seio essa
terra / me obriga a cantar / Enquan-
to eu ouço um grande alvoroço por aí
no universo / quero nestes versos, ó
Pátria querida, teu nome exaltar”. Já
tínhamos cantado esse samba pro
meu pai, mas ele não tinha ouvido
ainda com bateria, nem com a escola
fantasiada. Então a Mangueira for-
mou direitinho, como ia formar na
cidade, e tocou pra ele, que até des- .
maiou. Ficou todo mundo chorando,
aquela ... toda, até que ele recuperou
os sentidos, e aí saiu todo mundo
empolgado pra trazer a vitória. Quan-
do chegamos lá, tinha atrasado tanto
que a luz tava apagada. Mas apaga-
ram na hora que viram a Mangueira
pronta pra entrar. Já tinha começado
o carnaval de sacanagem.

FD - Carnaval organizado era as-
sim


D. NEUMA - É, já vai na mão o
vencedor.

HZ - Quer dizer que naquele ano a
Mangueira não desfilou?


D. NEUMA - Desfilou pro público,
com tudo apagado. Foi aplaudida!
Pela opinião pública, ela era campeo-
níssima do ano!

SL - Qual foi a escola que ganhou?

D. NEUMA - Portela. Já era assim.
Tem sempre um safado que pensa que
tá escondido, mas tem “safado” es-
tampado na cara. Esse chamava Flá-
vio Costa, da União das Escolas de
Samba, a entidade responsável pelo
desfile. Esse homem veio aqui, papai
levantou e gritou: “Vocês são uns
FDP! Mataram a minha escola, aca-
baram comigo, mas ainda tenho for-
ças pra esbofeteá-lo!" Nunca tinha
visto meu pai dar (*) em ninguém,
mas ele levantou, e deu primeiro nes-
se Flávio, uma (*) que os dedos dele
ficaram marcados. E deu então num
Rubens, que tava junto,

HZ - E sua mãe lá com a machadi-
nha?


D. NEUMA - Não, nem mamãe
esperava aquela. Ele ainda falou:
“Agora vocês reagem, que sou um
homem doente, mas ainda sou um
homem!” E a Mangueira tava tão
bonita naquele ano, com um samba
tão lindo! Naquele tempo era samba-
enredo mesmo, que agora não é mais.

SL - Qual é a diferença?

D. NEUMA - O compositor às ve-
zes era analfabeto, mas ia na Bibliote-
ca Nacional, levava um filho que
sabia ler, e procurava saber de tudo.

SL - Pesquisava mesmo.

D. NEUMA - Por isso é que tinha
briga na ala dos compositores com
Cartola e Seu Carlos Cachaça, que
eram mais inteligentes, e sempre se
aprofundavam nas coisas. Na Guerra,
Seu Carlos fez um samba assim: “Tu
és meu Brasil em toda parte / és na
ciência e na arte / portentosa e alta-
neira / Os homens que escreveram
sua história / conquistaram suas gló-
rias / com epopéias triunfais / Eu
quero neste pobre enredo / revivê-los,
glorificando os nomes seus / Elevá-
los ao Panteon / dos grandes imortais
/ pois merecem muito mais”. Mas no
Buraco Quente os caras fizeram um
samba assim: “Lutei / pela vitória do
meu Brasil / a voz do dever me
chamou / varonil e incontinenti / eu
parti pra defender / o meu Brasil / E
foi / com grande prazer / que eu
ergui meu fuzil / sem temer preparei
/ tudo até morrer / pra ver meu Brasil
/ vencer". Ganhou o samba do Carto-
la, feito na porta de um betequim,
com uma melodia linda! Mas tinham
uns caras que tinham voltado da
guerra, mutilados, que choraram,
cantavam o samba da guerra com
lágrimas, foi um drama no morro.
Ficou uma guerra e a Mangueira
desceu o morro muda. Nossa turma
subiu no palanque da avenida can-
tando o samba do Cartola, mas o
grosso da escola não cantou. Quando
chegou bem embaixo do júri, um
desgraçado que ninguém sabe quem
foi gritou assim: “Lutei / pela vitória
do meu Brasil...” Aí todo mundo: “A
voz do dever me chamou”. Arrepiou
todo mundo, o pessoal cantando dois
sambas-enredo, a escola parou. Por
causa disso Cartola se afastou.

SL — E agora, o que você acha dos
sâmbas-enredo?

D. NEUMA - Ah, gente, escola de
samba agora é um crime! Ninguém
disputa samba de terreiro numa qua-
dra. É só samba-enredo que você não
entende nada, a letra e a música são
completamente diferentes, se expres-
sam mal. O negócio deles é uma
gravação. Uma maldita gravação!

MD- Fala-se muito que a Manguei-
ra tem uma cadência tóda própria.
Mas teve um ano que desceu com um
“Obabá” que foi uma desgraça geral.
"Hoje, a ala dos compositores se preo-
cupa em fazer sambas dentro da ca-
dência tradicional?

D. NEUMA - Não.

MD - Mesmo depois daquele fra-
casso?

D. NEUMA - Olha, esse ano eu era
a favor do samba do Darcy, um sam-
ba cadenciado, bonito. O samba que
vai desfilar não é feio, mas achei
muito corrido.

EL - Qual foi o maior camaval da
Mangueira?

D. NEUMA - Olha, prá mim foi
.“Casa Grande & Senzala": (cantarola
a música até chegar ao seguinte tre-
cho, que canta alto, acompanhada de
alguns presentes)
“E nas senzalas as
escravas / dançavam batucando seus
tambores / louvores / louvores / a
esse povo varonil / que ajudou a
construir / a riqueza do nosso Brasil".
Esse samba foi muito gozado porque
era de Cumprido e Pelado. Roberto
Paulino, nosso presidente, era homem
importante, dirigia fábricas, então pra
falar com ele tinha que passar por
telefonista. Um dia chegou alguém lá,
a dona perguntou: “Quem quer falar
com Sr. Roberto?” “Peru”, Anotou lá.
Daqui a pouco chega outro. “A quem
devo anunciar?” “Cumprido”, E daí a
pouco chegou Pelado. Aí ela desespe-
rou, e foi falar com outra secretária:
“Que que eu faço? Chegaram aqui
três homens: Peru, Cumprido e Pela-
do!” (risos gerais) Falou assim: “Ó Dr.
Roberto, chegaram uns homens aqui
procurando o senhor; mas não sei o
nome deles direito...”

SL - A senhora e a Dona Zica,
apesar de serem fundadoras da esco-
la, não interferem nessas mudanças
que consideram negativas, né?


D. NEUMA - Não dá. Não adianta
querer trocar aquilo que a mocidade
quer. Pra se atualizar, viver junto
deles, tem que seguir aquilo que eles
querem. Não dá pra retroceder de
jeito nenhum. Por exemplo, aqui em
casa, adoro a música popular brasilei-
ra, mas tem uma vitrola aqui que de
manhã cedo já tem gente ouvindo,
não posso ouvir as músicas que eu
gosto, mas não posso também brigar
com minhas netas, mesmo elas que-
rendo ouvir esses americanos que
gritam. Vou lá pra cima e deixo elas
ouvindo essa porcaria. Antigamente,
a gente mesmo levava cordas pra
segurar o pessoal no carnaval. Depois
quiseram organizar, só que tudo or-
ganizado demais vira bagunça. Quem
levanta de manhã e já quer arrumar a
casa vai desorganizando a vida. Você
tem que levantar, lavar o rosto, tomar
o golinho de café, bater papo com o
vizinho, aí volta pra dentro de casa e
trabalha tranqúilo, tudo legal. Assim
é o carnaval, a gente saía de manhã
no bloco dos sujos, brincava, pulava,
cantava, chegava em casa com o pé
cheio de bolha, de noite vestia a
fantasia correndo, ia a pé até o Mara-
canã pra tomar o bonde, bebia umas
cachaças em tudo quanto é botequim
que encontrava no caminho, barraca,
birosca, ia se distraindo, você brinca-
va no carnaval... Atualmente, faz
uma fantasia, gasta uma fortuna, só
pra 80 minutos.

HZ - Mas a senhora continua desfl-
lando, né?

D. NEUMA - Continuo! Sou sem
vergonha, né!

EL - Vai de baiana?

D. NEUMA - Não, na ala dos com-
positores. Teve uma época que tinha
uma diretoria muito minha amiga, e
eu, ia de diretoria, mas depois que o
Bira entrou, acabou comigo. Fiquei
tão deslocada que só vou porque sou
sem vergonha. Meu interesse maior
era o Mirim da Mangueira, que é a
continuidade da escola. A Mangueira
precisa dessas crianças, é o futuro
que tá ali na mão deles. Incentivando
eles, tá ajudando a própria escola.
Mas sabe o que fizeram? Me tiraram
do meu lugar. Apareceu uma cachor-
ra que tá ensinando sabe o quê?
Maculelê, uma dança que bate palma,
que pula com pau, nada de samba! As
crianças não sabem sambar! Não tem
passista! Pôxa, quantos desfiles eu fiz
com crianças...

SL - Dona Neuma, a senhora ajuda
também na alfabetização das crian-
ças do morro, né?


D. NEUMA - Agora não ensino
muito mais... É que as crianças iam
pra escola e não aprendiam. Chega-
vam em casa, me davam os livros, eu
ensinava, mas chegavam na escola,
não passavam de lição. Digo; “Meu
Deus, eu ensinei, eles sabem ler!" Um
dia fiquei invocada: peguei um papel
e escrevi uma porção de palavrões.
Botei na mesa, e eles leram direitinho!
(risos) “Menino, o que escrevi aqui?”
''*.*.*.” (mais risos) Outro chegava:
“Olha, você escreveu aqui ''*.*.*.”
Quando enjoaram de palavrão, passei
pros sinônimos. “Vocês sabem o que
são sinônimos? São palavras que si-
gnificam quase à mêsma colsa, que
têm.o mesmo sentido. Por exemplo:
(*). Quantos sinônimos tem: (*)? “Eu
conheço um (*)!” (risos) Outro: “Eu
“conheço "(*)"! (gargalhadas) Depois
- passei pros verbos. Primeira conjuga-
ção: verbo (*) (gargalhadas altíssi-
mas)
. Presente, pretérito perfeito, Im-
perfeito, mais-que-perfeito, fui indo
“até o condicional, que é onde eu
sabia. Ah, mas era uma boa: eu * ria,
tu * rias... aprendiam direitinho! No
fim do ano eram os melhores da
escola!

HZ - Por que a senhora parou de
ensinar?


D. NEUMA - Ah, hoje as crianças
sabem mais do que eu. Tenho uma
neta FDP! Só tem medalhas. Tô com
muita pena dela, estudava num gru-
po, mas tava indo além das outras
alunas, então fizemos uma vaquinha
e pusemos ela no Brasileiro, só que tá
caro prá (*), não tá dando pra ela
continuar.

HZ - Você tem alguma renda?

D. NEUMA - Pensão de funcioná-
ria federal, uma mixaria: Cr$ 3.399. O
pior de tudo é você encarar aquelas
funcionárias do Ministério da Fazen-
da. Mas eu xingo. Xingo! “Vocês es-
tão aí por causa de mim!” De tanto
xingar, consegui mais uma pensão
especial de Cr$ 9.010.

FD - Nesse terreno que sua família
herdou, você está construindo uma
boa residência. Como você chegou a
conseguir isto que tem em termos de
patrimônio?


D. NEUMA - Quando vocês chega-
ram, falei: “É mais importante um:
amigo que milhões no bolso”, E eu
tenho é amigos! Quando eu pedi,
apareceram três arquitetos pra dese-
nhar minha casa. Fiz a casa que eu
quis fazer, dizendo onde eram os
quartos. Quanto vi tava esse casarão,
mas já tavam fazendo. O futuro de
nossos filhos ninguém sabe, cada um
preço que ninguém agúenta, então fiz
um lugar de bem-estar pros meus
netos. Os 18 que criéi não me dão
bola, mas quem sabe amanhã um
deles vai precisar? E não vou ter
coragem de dizer não. Vou amparar a
todos! Aqui em casa, dois quilos de
arroz não dá prum dia, tem que fazer
angu pra dar uma ajuda. Sempre tem
carne, que sou tarada por carne. Deus
me livre meu fogão não ter uma
carne! Não preciso de boas roupas,
bons calçados, jóias, nada disso. No
meu Natal desse ano ganhei arroz,
feijão, porco, peru, isso que me inte-
ressa.

SL - Várias gerações da Mangueira
já moraram na sua casa, né?

D. NEUMA - Criei Nicinho e o filho
dele. Sou madrinha da outra filha
dele. Tinha uma família grande aqui
do lado, com muitos filhos, então
mandavam um dormir aqui.

HZ - A senhora tava falando da
decadência das escolas de samba. Di-
zem que algo que contribuiu bastante
para isso seria a entrada do homém
branco, querendo colocar a sua cultu-
ra.


D. NEUMA - É mentira. O branco
não é brasileiro? Então tem que se-
guir a MPB e tudo que significa Bra-
sil.

HZ - Mas aí é o branco classe-
média, não o branco de morro.


D. NEUMA - Nada disso. Mesmo o
branco de classe média nos ensinou
muita coisa. A cultura brasileira ins-
truiu muito as crianças daqui. Está-
vamos querendo pagar um colégio
pra cinco crianças que tenham vonta-
de de aprender Artes Plásticas, pra
que, mesmo que não fiquem igual a
um Joãozinho Trinta, aprendam o
trabalho que ele faz e pelo qual se
paga uma fortuna. Depois de três
anos de escola, teria um contrato
assinado com a escola, que pagou por
ele, pra fazer o trabalho pro desfile da
escola. Enquanto isso, estaríamos
preparando outro grupo. Tenho certe-
za que daria certo, e que o carnaval
ficaria mais barato. Os próprios car-
navalescos não iam fazer o que fazem
hoje, porque teriam muitos concor-
rentes. Só cobram esses bilhões por-
que são poucos. O mal é o nome que
se dá ao cara. Antigamente, pra en-
trar em escritório de advogado, tinha
que tratar por Sua Excelência. Hoje
as Excelências são os carnavalescos.
Depois ficam: “Tenho um nome a
zelar, não vou fazer carnaval pra uma
escolinha medíocre”. No carnaval, ti-
nham que pensar era no nome do
povo.

FD - Mas essa penetração desses
elementos não seria uma conseqiuên-
cia da entrada do branco classe-
média, como diz o Haroldo, trazendo
toda uma engrenagem para o samba?


D. NEUMÁ - Não é o branco clas-
se-média que traz isso não. Quem traz
são justamente as escolas de samba!
Antigamente, levávamos adereços. A
Portela introduziu alegorias, passou a
contar pontos, e todos tiveram que ir
com alegorias. Aí vieram os nomes
famosos. Tenho uma admiração pelo
Fernando Pamplona. Arlindo Rodri-
gues também é homem de responsabi-
lidade de dentro de um carnaval.
Agora têm Viriato, Joãozinho Trinta,
uma pá de elementos de nome.

FD - Essa gente toda veio da Esco-
la de Belas-Artes, na geração que
seguiu o Pamplona e Maria Augusta.


D. NEUMA - Não tem nada a ver
com os bacanas que entraram no
samba. Essa gente foi chamada por
diretores de escolas de samba pra
participarem das mesmas.

MD - Seria então uma consequên-
cia da concorrência entre as escolas-.
desamba?

D. NEUMA - Sim, mas foram trazi-
dos, convidados. É diferente. O cara
que veio não teve culpa, é igual joga-
dor de futebol, tá no seu time, mas
tem o seu preço.

HZ - Essa história da Mangueira
estar falida, que nem o Brasil, que
diretores de outras escolas iam dar
uma força, isso é boato?


D. NEUMA - A Mangueira real-
mente não tinha dinheiro, mas tem
muitos amigos, que fizeram seu car-
naval no ano passado.

HZ - E esse ano, ela conseguiu
equilibrar as flnancas?


D: NEUMA - Não, ainda depende
desse amigos, que continuam junto
dela.

HZ - A falta de dinheiro não pode
parar a Mangueira?


D. NEUMA - Sinceramente, tenho
medo da destruição da Mangueira,
não por causa de dinheiro, mas pela
situação em que se encontra o com-
ponente. Isso em todas as escolas. O
componente tá fazendo das tripas
coração pra botar um carnaval na rua
à altura daquilo que tem que ser feito,
O mais simples que faça tá custando
uma nota violenta, Se não mudarem
os meios da gene sair, o carnaval vai
acabar. Não só Mangueira, todas vão
acabar. Duvido que continue alguma
escola de samba muito grande.

HZ - A senhora se preocupa com
essa violência que anda na cidade?
Assaltos, roubos, agressões? Qual a
causa disso?


D. NEUMA - Esso é safadeza. Não é
devido ao desemprego, ao cara estar
com fome, precisa-se de muitos traba-
lhadores. Querem ver? Tô construin-
do essa casa. Ninguém quer ser pe-
dreiro. Preferem ficar com fome a
ajudar outro a carregar massa. Quan-
ta obra aí precisando de servente de
pedreiro? Outro dia disseram pra
mim: “Você fala que são felizes, mas
quanta gente debaixo de viaduto, dor-
mindo debaixo de pontes, com fome?”
Respondi: “Porque querem”. Quantas
mulheres precisam de uma cozinhei-
ra, uma lavadeira, alguém pra passar
roupa? Eu acabava com esses mendi-
gos todos, botava eles numa comuni-
dade aí, falava “planta, gente”, apa-
nhava roupa de orfanato, levava pra
eles lavar e passar. Iam trabalhar,
mas iam comer. Ninguém quer nada.
Quando eu tinha meus filhos peque-
nos eu lavei pra fora. Meu marido foi
funcionário do Hospital Central da
Aerondutica durante 26 anos. E pra.
meus filhos estudarem, lavei 18 trou-
xas de roupa por semana. Esses assal-
tos é porque acham facilidade em
roubar, alguém facilita eles. Aqui no
morro, graças a Deus, não temos esse
problema. Minha casa não tem porta
nem janela. E cada barraco tem suas
coisas, de acordo com o crediário que
pagam. Antigamente, a gente não
podia ter, não existia crediário mas
hoje tem, e cada um respeita.

SL - A senhora conheceu seu mari-
do na quadra da Mangueira?


D. NEUMA - É, conheci ele quando
tinha 16 anos. Casei com 19. Pesava
56 quilos. PQP! Ai, que saudade! Eu
tinha aquela atração que as mocinhas
da época davam à turma, né. No
Cassino Atlântico, arranjei um namo-
rado branco e rico, de uma família
italiana que morava no Catete! Mor-
feu Beglioni. Ele vinha atrás de mim
no morro, minha mãe ficava: “Olha,
branco, rico... você vai ser chamada
de negrinha do morro, e ele vai dizer
que tirou você da (*)”. Pensei muito e
falei: “Realmente, é verdade”. Então
o primeiro crioulo que apareceu na
rua namorei, casei, e vivi com ele 31
anos, até ficar viúva. Meu marido foi
a coisa mais bacana que Deus me
deu. Fiquei viúva com 50 anos, e
nunca mais quis saber de marido.
Valeu o casamento.

SL - Como foi as Bodas de Prata?

D. NEUMA - No dia da minhas
Bodas de Prata foi a missa de Sétimo
Dia do meu filho. Tive quatro filhas
mulheres e um homem. Uma menina
morreu com 10 meses, e perdi um
filho com 19 anos. Ficou tuberculoso
e não quis ficar bom. Não era o
destino dele.

HZ - O que teria que acontecer na
escola pra senhora voltar a ter o
mesmo interesse por lá?


D. NEUMA - Raízes. As raízes
estão acabando. Tinham que voltar a
se entrosar com o pessoal, Tinham
que pensar: “Pô, se tivesse um Rai-
mundo de Castro, um Zé Ramos, um
Carlos Cachaça...” Nós sentaríamos
do lado, e seria a força total da
Mangueira. Aí viria seu Djalma Preto,
seu Djalma Arruda, uma rapaziada
nova que está ajudando a escola de
maneira legal, juntava todo mundo, e
seria uma boa. Mas ninguém quer
mais nada.

SL - Ano passado a escola fez um
desfile muito ríspido. A Mangueira
apenas passou. Mas quando o bloco
Balanço da Mangueira desfilou, pare-
cia realmente uma escola de samba. O
Balanço da Mangueira tem muita
gente nova, então não é problema de
dade. Não seria, como Haroldo falou,
a introdução de pessoas estranhas ao
samba na escola?


D. NEUMA - Não...

SL - Como é que a senhora explica
então?


D. NEUMA - Tem coisas que a
gente não pode falar, que aí publicam,
e ferem as outras pessoas. Eu sei O
que destruiu a Mangueira. Foram pe-
quenas coisas que acabaram com a
Mangueira, coisas que feriram muita
gente, inclusive eu.

HZ - Mas pelo amor que a senhora
tem à Mangueira, a senhora devia
aproveitar a oportunidade pra falar
dessas coisas, pra tentar reanimar a
escola.


D. NEUMA - Não...

SL - Porque a turma do Buraco
Quente tava lá firme no Balanço da
Mangueira.


D. NEUMA - Olha, a desgraça disso
tudo chama “samba-enredo”. Antes
era escolhido pelo componente. Ago-
ra quem escolhe é o próprio composi-
tor, que traz ônibus superlotados.

SL - Com pessoas de fora.

D. NEUMA - Que não são da esco-
la. Compram ingressos pra esse pes-
soal, que invade a quadra. O interesse
deles é ganhar o samba-enredo e não
prestigiar a escola.

SL - Dona Neuma, os ensaios da
Mangueira estão ficando vazios, a
ponto de acabarem mais cedo. A
senhora já explicou o problema de
quem vem de fora. Agora, o pessoal
do morro não tá indo à Mangueira?

D. NEUMA - 40% do pessõal do
morro é agora é protestante. Isso pesou
muito.

FD - Protestante não frequenta
nada de samba.


HZ - Mas quem vai ganhar o car-
naval de 83?

D. NEUMA - A Mangueira.

EL - Qual o enredo desse ano?

D. NEUMA - "Verde que te quero
Rosa, Semente Viva do Samba." É um
apelo ao pessoal lá de cima, os man-
gueirenses que já foram, pra olhar
qui por nós. Precisamos mesmo dessa
Vitória, sabe.

FD - Olha, eu acho que vocês
falaram pouco sobre a influência da
Dona Neuma como líder comunitária.


HZ - Com es eleições, sua casa
deve ter ficado mais chela ainda, né.
A senhora apoiou algum candidato?


D. NEUMA - Paulo Alencar, o mé-
dico da comunidade.

MD - Elegeu-se?


D. NEUMA - E quem do PMDB
elegeu? Só o Sérgio Cabral mesmo.






























HZ - A senhora tem fé no Governo
Brizola?

D. NEUMA - Olha, duas coisas que
não gosto na vida: dinheiro e mentira.
Acho o Brizola um mentiroso. Ofere-
ceu troço que vai ser impossível dele
fazer. Disse que ninguém vai pagar
passagem de ônibus. Se eu entrar no
ônibus e não pagar, eu vou é ser
presa. Disse que não vou pagar mais
imposto de água, esgoto, luz, não vou
pagar nada, e agora quero ver. Gosto
da realidade das coisas. Tinha que ser
um governador que fosse eleito sem
ter que prometer nada impossível.
Não sou política, não gosto de políti-
ca, mas tô sentindo que tá pegando
mal às pampas.

MD - Quem lhe deu esse título de
Primeira Dama da Mangueira?


D. NEUMA - A imprensa. Um dia
estavam aqui em casa Valcir Araújo e
Haroldo Bonifácio, almoçando comi-
go. Recebi um telefonema da casa de
dona Tereza Goulart. Pensei que fos-
se trote. Uma mulher dessas ia ligar
pra mim pra que, pô? “Neuma, eu
queria assitir o samba da Mangueira,
mas tá chuviscando, e me disseram
que é ao descoberto. Se chover, vai
ter samba?” Continuei achando que
era trote. “Neuma, vou te dar o meu
telefone particular, aí você dá uma
ligada pra mim se realmente houver o
ensaio. Mas olha, vou sozinha no meu
carro, não quero que tenha festas
nem aparatos me esperando.”

MD - João Goulart era ministro do
Trabalho?

D. NEUMA - Não, era Presidente
da República! Ela continuou: ''No
outro carro vão minha secretária e o
Denner”. Então fui contar pro Harol-
do o trote que levei, só que ele disse:
“Ô Neuma, isso é o telefone dela
mesmo”. Seis horas, céu de estrela,
telefonei pra mulher. Quando ela con-
firmou, liguei pro pessoal de Olaria
que dava o serviço no morro: “Deteti-
ve Neto, a gente recebeu um telefone-
ma assim-assim, a moça diz que vem,
eu não queria que vocês parassem o
carro na porta da escola, pra não
pegar mal. Pôem do lado, escondido.
E quando ela chegar, encosta o pes-|'
soal, pra não ficar pedindo”. (chegada
de Terezinha, destaque da Manguel-
ra, Neuma gesticula para um banco)

Senta aí que já vou te atender, (ajeita
a roupa)
Tô suando pra (*). Mas aí ela
chegou, com um vestido simples, ca-
belinho amarrado, uma sadalinha,
sem pintura. Simples. Na porta per-|.
guntou: “Quanto que vou pagar?” O
rapaz falou: “Dama não paga”.
“Qualquer dama?” “Claro”. “Ah,
pensei que fosse só eu”. Só assim].
descobrimos que essa era a Dona
Teresa Goulart. Ela entrou, botamos
ela no palanque, tomou leite de onça
à vontade, sambou a noite toda. Ti-
nha ido lá pra brincar. Mas Haroldo e
Valcir, que sabiam da coisa, ligaram
pra imprensa, chegaram jornalistas, e
na segunda saiu em todos os jornais
“A Primeira Dama do País recebida
condignamente pela Primeira Dama
do Samba”, Aí fiquei com esse título,
sem ter marido presidente nem
nenhuma.

HZ - O pessoal do morro gostou?

D. NEUMA - Bem, todo lugar tem
gente que não aceita. Tem inveja, né.

FD - Mas quando veio o samba do
Sérgio Cabral ninguém mais teve dú-
vidas.


D. NEUMA - É bom viver assim.
Gosto de ser alegre. Têm coisas que
me comovem, boto lágrimas de croco-
dilo pra fora, seguro as outras pra não
descerem. Não sei ser triste. Não sei
visitar doente nem ver defunto. Fico
(*) Quando é homem mesmo, digo:
“Por que? Tanto (*) aí, foi ir você"!

(A entrevista termina bruscamente.
Chega um ônibus da Fundação Esta-
dual de Museus que levou um grupo
de crianças da Mangueira para uma
tarde de recreação no Museu do 1
Reinado, em São Cristóvão. A confu-
são foi enorme. Como sempre, eram
muitos os candidatos. Dona Neuma é
obrigada a se meter na fila e tentar
dar um pouco de ordem. E o faz no
seu melhor estilo: dando empurrões e
só não chamando as crianças de san-
tas).