CARTOLA: Uma vida a passo e compasso
Compositor da época em que a polícia
subia o morro para fechar roda de samba,
ele se considera "um operário do carnaval".
Manchete 3 dezembro 1977
Depoimento a Ronaldo Bôscoli e Fotos Manchete
"Se a gente não ficar falando
muito das minhas com-
posições, eu topo. Num
leito de hospital, o melhor é a
gente falar da vida. Tenho uma
vida pela frente. Tenho família
esperando por mim. Logo eu,
que nunca fui pai. Cá pra nós,
com um certo desgosto. Meus
dois filhos nasceram, mortos. Aí,
o jeito é subtrair o azar e somar a
sorte. A sorte que tive quando
encontrei Zica. E olha que muita
água passou debaixo da ponte...
Antigamente o que a gente não
ganhava em dinheiro, ganhava
em mulher. Nesse ponto, eu me
considero um milionário...”
Aí Cartola — aliás, Angenor de
Oliveira, 11 de outubro de 1908
— dá uma gostosa gargalhada.
Ele está internado no INPS
quando gravo seu depoimento.
Esta palavra, que a princípio o
assustou, passa a ser meio esno-
bada.
“Depoimento? O que é isso,
meu filho, você acha que eu vou
morrer? Nada disso. Eu criei
cinco pessoas, inclusive um casal
de netos da Zica e nosso filho,
Ronaldo. Como se fosse nosso,
mas dado de papel passado. Seu
xará desfila ma Mangueira e é
chegado a um futebol. O futebol
dele, eu prestigio. Vê-lo desfilar
na Mangueira é muito luxo pra
nós. Sabe quanto é que está cus-
tando uma entrada? Quem sabe,
nós damos sorte e vamos ver O
menino “pela televisão”...
Desde que o carnaval virou in-
dústria eu parei com ele. Não
sou industrial e não tenho mais
idade para ser operário...”
"Pra mim, a doença
é um habeas-corpus”
“Fui operário do carnaval até
ano passado quando — à força
— desfilei na ala dos composito-
res. Este ano eles estão armando
outra pra mim. Mas isto aqui —
Cartola mostra o hospital onde
diz que irá operar atiróide — é o
próprio habeas-corpus... Tou
velho, meu filho. O negócio é
cansativo e, de certa forma, men-
tiroso. Tem muita carne de peixe
metida no pirão...”
“Comecei nas Laranjeiras. Mas
a barra pesou. E nós subimos o
posições, eu topo. Num
leito de hospital, o melhor é a
gente falar da vida. Tenho uma
vida pela frente. Tenho família
esperando por mim. Logo eu,
que nunca fui pai. Cá pra nós,
com um certo desgosto. Meus
dois filhos nasceram, mortos. Aí,
o jeito é subtrair o azar e somar a
sorte. A sorte que tive quando
encontrei Zica. E olha que muita
água passou debaixo da ponte...
Antigamente o que a gente não
ganhava em dinheiro, ganhava
em mulher. Nesse ponto, eu me
considero um milionário...”
Aí Cartola — aliás, Angenor de
Oliveira, 11 de outubro de 1908
— dá uma gostosa gargalhada.
Ele está internado no INPS
quando gravo seu depoimento.
Esta palavra, que a princípio o
assustou, passa a ser meio esno-
bada.
“Depoimento? O que é isso,
meu filho, você acha que eu vou
morrer? Nada disso. Eu criei
cinco pessoas, inclusive um casal
de netos da Zica e nosso filho,
Ronaldo. Como se fosse nosso,
mas dado de papel passado. Seu
xará desfila ma Mangueira e é
chegado a um futebol. O futebol
dele, eu prestigio. Vê-lo desfilar
na Mangueira é muito luxo pra
nós. Sabe quanto é que está cus-
tando uma entrada? Quem sabe,
nós damos sorte e vamos ver O
menino “pela televisão”...
Desde que o carnaval virou in-
dústria eu parei com ele. Não
sou industrial e não tenho mais
idade para ser operário...”
"Pra mim, a doença
é um habeas-corpus”
“Fui operário do carnaval até
ano passado quando — à força
— desfilei na ala dos composito-
res. Este ano eles estão armando
outra pra mim. Mas isto aqui —
Cartola mostra o hospital onde
diz que irá operar atiróide — é o
próprio habeas-corpus... Tou
velho, meu filho. O negócio é
cansativo e, de certa forma, men-
tiroso. Tem muita carne de peixe
metida no pirão...”
“Comecei nas Laranjeiras. Mas
a barra pesou. E nós subimos o
morro. Eu pra sempre. Vou mor-
rer na Mangueira. Onde pisei
com 11 anos. Quatro anos de-
pois, eu desci aquele barranco
feito um doido. Minha mãe ia ter
outro filho. Chegamos tarde. Eu
e o parteiro. Com a morte da
velha, o pessoal resolveu descer.
rer na Mangueira. Onde pisei
com 11 anos. Quatro anos de-
pois, eu desci aquele barranco
feito um doido. Minha mãe ia ter
outro filho. Chegamos tarde. Eu
e o parteiro. Com a morte da
velha, o pessoal resolveu descer.
Tive um desentendimento com
meu velho, Sebastião Joaquim
de Oliveira, que, aliás, também
me passou uma rasteira. Ele es-
tava bem, apesar dos 93 anos.
Morava só. Aguentou a barra so-
zinho. Minha irmã chamou.
Internei-o e — por via das dúvi-
das deixei dinheiro para o en-
terro — não fazia fé que ele apa-
gasse. Nem os médicos. Subiu
quando eu estava em Curitiba
fazendo show. Voltei, enterrei-o
e fui fazer um repeteco do show
que, aliás, agradou muito. Eu
acho que o público que com-
prou entradas antecipadas não
tem nada com meu drama. Faço
um samba e o assunto morre no
peito... Mas, naquele tempo, fi-
quei na bronca com o homem. E
resolvi ficar no morro.
meu velho, Sebastião Joaquim
de Oliveira, que, aliás, também
me passou uma rasteira. Ele es-
tava bem, apesar dos 93 anos.
Morava só. Aguentou a barra so-
zinho. Minha irmã chamou.
Internei-o e — por via das dúvi-
das deixei dinheiro para o en-
terro — não fazia fé que ele apa-
gasse. Nem os médicos. Subiu
quando eu estava em Curitiba
fazendo show. Voltei, enterrei-o
e fui fazer um repeteco do show
que, aliás, agradou muito. Eu
acho que o público que com-
prou entradas antecipadas não
tem nada com meu drama. Faço
um samba e o assunto morre no
peito... Mas, naquele tempo, fi-
quei na bronca com o homem. E
resolvi ficar no morro.
Escola de samba, quadra?
Isso é papo de hoje. Antigamente,
a gente baixava numa roda de samba.
Que eu só passei a frequentar, de
cara limpa, com 16 anos. A barra
era pesada, porque a polícia
tinha que apresentar serviço. E
acabava com toda roda. No
morro, ela não pintava. Debaixo
pra cima já é brabo — né meu
filho? — e inda por cima subir à
toa... Lá debaixo, zunia o garo-
tinho pelas embrenhas dos ma-
tos: “Olha a polícia!” Eles, além
de correr um risco, geralmente
marcavam a maior bobeira. Por
isso é que eu sempre frequentei
os morros. Jogada de Estácio era
para malandro metido a coisa e
tal. Nos morros a entrada era fá-
cil mas a saída muito mais.
cara limpa, com 16 anos. A barra
era pesada, porque a polícia
tinha que apresentar serviço. E
acabava com toda roda. No
morro, ela não pintava. Debaixo
pra cima já é brabo — né meu
filho? — e inda por cima subir à
toa... Lá debaixo, zunia o garo-
tinho pelas embrenhas dos ma-
tos: “Olha a polícia!” Eles, além
de correr um risco, geralmente
marcavam a maior bobeira. Por
isso é que eu sempre frequentei
os morros. Jogada de Estácio era
para malandro metido a coisa e
tal. Nos morros a entrada era fá-
cil mas a saída muito mais.
Nosso crime? Samba, meu nego,
sambinha, manso e gostoso... Só
em 1928/29 foi oficializada a Esta-
ção Primeira de Mangueira. Faz
as contas e veja quanto tempo a
gente sartou de banda. Era en-
graçado... Na fundação da es-
cola, eu fui diretor de harmonia.
Mas sejamos honestos. O mi-
cróbio do samba me foi injetado
pelo velho. Eu era muito garoto
quando saía com toda a família
no rancho dos Arrepiados. E com
sambinha, manso e gostoso... Só
em 1928/29 foi oficializada a Esta-
ção Primeira de Mangueira. Faz
as contas e veja quanto tempo a
gente sartou de banda. Era en-
graçado... Na fundação da es-
cola, eu fui diretor de harmonia.
Mas sejamos honestos. O mi-
cróbio do samba me foi injetado
pelo velho. Eu era muito garoto
quando saía com toda a família
no rancho dos Arrepiados. E com
minha voz, que era boa, cheguei
a ala do Satanás, coisa de anti-
gamente, meu filho... Saíamos
eu, papai, que tocava cava-
quinho profissionalmente no
bando, minha mãe e meus ir-
mãos.”
“A primeira vez que vesti uma
fantasia. Sabe lá o que é isso?
Minha mãe caprichava mais co-
migo. Eu era o primeiro homem
da sua família. E, um dia, ouvi a
velha dizendo pra papai que
“não adiantava chiar, eu era O
seu filho querido”. Parece uma
bobagem, mas isso está marcado
no meu peito, até hoje... Minha
mãe está no céu. Ela morreu
numa quinta-feira santa. Dia em
que eu senti um troço aqui no
peito, mais pesado que eu. E que
eu não explicava pra ninguém..:
Uma estranha dor de corno.
a ala do Satanás, coisa de anti-
gamente, meu filho... Saíamos
eu, papai, que tocava cava-
quinho profissionalmente no
bando, minha mãe e meus ir-
mãos.”
“A primeira vez que vesti uma
fantasia. Sabe lá o que é isso?
Minha mãe caprichava mais co-
migo. Eu era o primeiro homem
da sua família. E, um dia, ouvi a
velha dizendo pra papai que
“não adiantava chiar, eu era O
seu filho querido”. Parece uma
bobagem, mas isso está marcado
no meu peito, até hoje... Minha
mãe está no céu. Ela morreu
numa quinta-feira santa. Dia em
que eu senti um troço aqui no
peito, mais pesado que eu. E que
eu não explicava pra ninguém..:
Uma estranha dor de corno.
Eu não nasci na Mangueira, mas
acho que participei de todos os
seus movimentos. Quando a
gente pensou em fundar a nossa
escola o falecido Nascimento —
que briga braba, meu Deus —
disse que ninguém iria acabar
com o bloco do Faria, que
aquele negócio de escola era
coisa de maricota e foi duro pra
acho que participei de todos os
seus movimentos. Quando a
gente pensou em fundar a nossa
escola o falecido Nascimento —
que briga braba, meu Deus —
disse que ninguém iria acabar
com o bloco do Faria, que
aquele negócio de escola era
coisa de maricota e foi duro pra
dobrar o homem. Foi preciso o
Marcelino subir lá em cima e le-
var um papo, enquanto a gente,
ensaiando, esperava o resultado
aqui embaixo. Marcelino tam-
bém era cana dura. Mas parece
que o negócio foi resolvido no
papo mesmo. Aliás, sempre que
eu posso acendo uma vela para O
falecido Marcelino — essa histó-
ria, meu filho, tem falecido paca
—, meu mestre e a primeira pes-
soa pra quem eu meti a malan-
dragem.
Marcelino subir lá em cima e le-
var um papo, enquanto a gente,
ensaiando, esperava o resultado
aqui embaixo. Marcelino tam-
bém era cana dura. Mas parece
que o negócio foi resolvido no
papo mesmo. Aliás, sempre que
eu posso acendo uma vela para O
falecido Marcelino — essa histó-
ria, meu filho, tem falecido paca
—, meu mestre e a primeira pes-
soa pra quem eu meti a malan-
dragem.
Escuta Marcelino, o ne-
gócio é que eu estou parado na
mulher de um cara valente :
paca... “Valente aqui só eu, ga-
roto. Vai firme”. E eu fui. Só que
a mulher era a mulher do pró-
prio Marcelino. Eu tinha o quê?
18/19 anos. Aí subi o morro e me
empapucei... O Marcelino sacou
que naquele dia eu faltei à roda
de samba. E foi me catar na casa
dele...
gócio é que eu estou parado na
mulher de um cara valente :
paca... “Valente aqui só eu, ga-
roto. Vai firme”. E eu fui. Só que
a mulher era a mulher do pró-
prio Marcelino. Eu tinha o quê?
18/19 anos. Aí subi o morro e me
empapucei... O Marcelino sacou
que naquele dia eu faltei à roda
de samba. E foi me catar na casa
dele...
O homem, com um pu-
nhal desse tamanho, não sabia
se furava a mulher ou se me fu-
rava. Eu desci, de calça na mão.
Até que ele pegou no meu can-
gote magro. Tudo que ele dizia,
bufando, de minha mãe, eu con-
cordava chorando. Ele preferiu
livrar minha cara, senão você es-
taria entrevistando o Cartola
numa sessão espírita.
nhal desse tamanho, não sabia
se furava a mulher ou se me fu-
rava. Eu desci, de calça na mão.
Até que ele pegou no meu can-
gote magro. Tudo que ele dizia,
bufando, de minha mãe, eu con-
cordava chorando. Ele preferiu
livrar minha cara, senão você es-
taria entrevistando o Cartola
numa sessão espírita.
Marcelino era ingênuo.
Contou o fato pra turma
que frequentava a barbearia.
“Ué, você não disse que ele
é seu aluno? Pois dê um diploma
pra ele. Tá quase professor”.
Marcelino mudou de mulher...
é seu aluno? Pois dê um diploma
pra ele. Tá quase professor”.
Marcelino mudou de mulher...
A Mangueira sempre foi minada
pela política. Tanto que durante
muitos anos, andei afastado.
Torcia pela minha escola, de
longe... Só voltei ano passado,
quando a ala do Bira venceu. E já
fui obrigado a desfilar. A Man-
gueira é como o Flamengo. Só tá
bem quando está nas cabecei-
ras... Tempo de Carlos Cachaça
e Candinho já vai longe. E dá
saudade. Hoje a Mangueira —
como diz o outro — é obrigada a
trunfo...”
— E as mulheres, Cartola? O
samba.
“Desde que eu tive um caso
com a mulher do Marcelino,
aprendi que mulher a gente
marca no cabo da espingarda.
Cada cinco, um risco em diago-
nal. E moita. Muita moita. Das
que eu posso falar, a falecida
pela política. Tanto que durante
muitos anos, andei afastado.
Torcia pela minha escola, de
longe... Só voltei ano passado,
quando a ala do Bira venceu. E já
fui obrigado a desfilar. A Man-
gueira é como o Flamengo. Só tá
bem quando está nas cabecei-
ras... Tempo de Carlos Cachaça
e Candinho já vai longe. E dá
saudade. Hoje a Mangueira —
como diz o outro — é obrigada a
trunfo...”
— E as mulheres, Cartola? O
samba.
“Desde que eu tive um caso
com a mulher do Marcelino,
aprendi que mulher a gente
marca no cabo da espingarda.
Cada cinco, um risco em diago-
nal. E moita. Muita moita. Das
que eu posso falar, a falecida
Deolinda e a Zica. Minha força
de fé. Meu cavalo de inspiração,
o argumento do meu samba.
de fé. Meu cavalo de inspiração,
o argumento do meu samba.
Antes? Fiz muito samba, mas pra
mim antes não vale nada...
Aprendi, com os mais velhos, a
não fazer meu nome com a mu-
lher dos outros. Do samba, a
gente fala. Deita e rola. Zé Com
Fome e Geraldo Pereira chega-
ram à Mangueira depois de mim.
Geraldo era valente, tá certo,
mas antes dele eu tenho que ci-
tar o Nascimento, o Marcelino —
desse eu não esqueço — e o Ca-
boclo.
mim antes não vale nada...
Aprendi, com os mais velhos, a
não fazer meu nome com a mu-
lher dos outros. Do samba, a
gente fala. Deita e rola. Zé Com
Fome e Geraldo Pereira chega-
ram à Mangueira depois de mim.
Geraldo era valente, tá certo,
mas antes dele eu tenho que ci-
tar o Nascimento, o Marcelino —
desse eu não esqueço — e o Ca-
boclo.
Esses, quando chegavam,
a moçada mudava o tom da me-
lodia. Sempre pra mais fino. Po-
rém tudo gente boa. Você acre-
dita que eu nunca fui atacado ou
assaltado em Mangueira? Hoje
em dia, eles se dão ao luxo de
me acompanhar até a porta de
casa. “Seu Cartola, tem vaga-
bundo diferente nas bocas, é
melhor a gente: levar o senhor e
dona Zica...”
a moçada mudava o tom da me-
lodia. Sempre pra mais fino. Po-
rém tudo gente boa. Você acre-
dita que eu nunca fui atacado ou
assaltado em Mangueira? Hoje
em dia, eles se dão ao luxo de
me acompanhar até a porta de
casa. “Seu Cartola, tem vaga-
bundo diferente nas bocas, é
melhor a gente: levar o senhor e
dona Zica...”
Antigamente, era outra coisa...
Eu — raramente —descia o
morro pra pintar no Estácio.
Lá encontrava gente legal
como o Ismael Silva, o Brancura,
o Baiaco, tudo gente fina. Eles
foram os primeiros a elogiar meu
samba primeiro, um negócio as-
sim, meio pé-quebrado, meio
sem graça, mas muito presti-
giado: o Chega de Demanda.
como o Ismael Silva, o Brancura,
o Baiaco, tudo gente fina. Eles
foram os primeiros a elogiar meu
samba primeiro, um negócio as-
sim, meio pé-quebrado, meio
sem graça, mas muito presti-
giado: o Chega de Demanda.
Os caras me animaram tanto que aí
eu saí fazendo uma porção...
Bem que o pessoal do Estácio me
chamava. Mas era rabo certo. A
polícia fazia o nome, prendendo
os frequentadores das rodas de
samba do asfalto. Subir lá em
cima. De cima pra baixo? Nunca.
Nunca eles pintaram. Tanto que
eu jamais encontrei a polícia. Só
vim apanhar dela quando parti-
cipava oficialmente da Man-
gueira.
eu saí fazendo uma porção...
Bem que o pessoal do Estácio me
chamava. Mas era rabo certo. A
polícia fazia o nome, prendendo
os frequentadores das rodas de
samba do asfalto. Subir lá em
cima. De cima pra baixo? Nunca.
Nunca eles pintaram. Tanto que
eu jamais encontrei a polícia. Só
vim apanhar dela quando parti-
cipava oficialmente da Man-
gueira.
Na Praça Onze. Apanhei
de criar bicho. Por quê? Quem
explica isso, meu filho? O pau
come, quem samba, samba,
quem não samba, dá o fora. Eu
não estava acostumado. Dancei.
À primeira e única vez... 1938.
Desde que a escola foi fundada e
seu presidente era o pai da
Nelma, Saturnino Gonçalves.
Com quem tive desavenças, mas
que, felizmente, morreu meu
amigo. Desavenças eu tive mui-
tas pela vida, mas parece que em
meu destino está escrito que
tudo acaba bem. Veja você, meu
filho, enquanto eu era o Ange-
nor, o garotão, sofri o diabo.
Depois de velho, sem menos es-
perar, amansei a vida.”
de criar bicho. Por quê? Quem
explica isso, meu filho? O pau
come, quem samba, samba,
quem não samba, dá o fora. Eu
não estava acostumado. Dancei.
À primeira e única vez... 1938.
Desde que a escola foi fundada e
seu presidente era o pai da
Nelma, Saturnino Gonçalves.
Com quem tive desavenças, mas
que, felizmente, morreu meu
amigo. Desavenças eu tive mui-
tas pela vida, mas parece que em
meu destino está escrito que
tudo acaba bem. Veja você, meu
filho, enquanto eu era o Ange-
nor, o garotão, sofri o diabo.
Depois de velho, sem menos es-
perar, amansei a vida.”
Do violão ele nunca se separou desde os tempos de
garoto, quando frequentava a turma da pesada de
Mangueira. De Zica, não se afasta: numa existência de
muito sofrimento e luta, ela foi “o seu lado da sorte”.
garoto, quando frequentava a turma da pesada de
Mangueira. De Zica, não se afasta: numa existência de
muito sofrimento e luta, ela foi “o seu lado da sorte”.
M INHA juventude passei
entre fome e desabrigo.
Depois dos meus quatro
anos de primário — que hoje
Valeriam como um ginásio —
curti a vida com água até a
cintura em escavações, ou
moendo carvão nos porões do
Cais do Porto. Antes, eu era mais
livre. Trabalhava em obra.
Libertei-me da gráfica porque
tudo era muito fechado e tinha
um negócio chamado serão. Na
obra eu podia, pendurado nos
andaimes baixos — na época —,
Paquerar as mulatas e as
negonas. 38 anos. Meningite.
Salvou-me a penicilina
estrangeira. Que pintava muito
por aqui, logo depois da guerra.
Mas eu fiquei maculado.
Puxando da perna esquerda.
Muleta. Muleta no duro. Aí,
ninguém me queria na obra.
entre fome e desabrigo.
Depois dos meus quatro
anos de primário — que hoje
Valeriam como um ginásio —
curti a vida com água até a
cintura em escavações, ou
moendo carvão nos porões do
Cais do Porto. Antes, eu era mais
livre. Trabalhava em obra.
Libertei-me da gráfica porque
tudo era muito fechado e tinha
um negócio chamado serão. Na
obra eu podia, pendurado nos
andaimes baixos — na época —,
Paquerar as mulatas e as
negonas. 38 anos. Meningite.
Salvou-me a penicilina
estrangeira. Que pintava muito
por aqui, logo depois da guerra.
Mas eu fiquei maculado.
Puxando da perna esquerda.
Muleta. Muleta no duro. Aí,
ninguém me queria na obra.
Vigia? Quem toma conta de
Noite é sapo. Desesperado, sem
muito o que fazer, rodei
redondo uma noite entre samba
e birita. Dia seguinte, comprei
um jornal e descobri um
emprego que me caía sob
medida. Garagista no Leblon. O
anúncio não avisava que a gente
tinha que lavar onze carros. Mas,
quem está nela, o jeito é não
fazer onda. Aí, a marola entra
boca adentro... A noite era fria,
o corpo molhado, só mesmo
uma quentinha.
Noite é sapo. Desesperado, sem
muito o que fazer, rodei
redondo uma noite entre samba
e birita. Dia seguinte, comprei
um jornal e descobri um
emprego que me caía sob
medida. Garagista no Leblon. O
anúncio não avisava que a gente
tinha que lavar onze carros. Mas,
quem está nela, o jeito é não
fazer onda. Aí, a marola entra
boca adentro... A noite era fria,
o corpo molhado, só mesmo
uma quentinha.
Aí fui descoberto pelo Sérgio Porto.
Cartola, você está nesta? O
Sérgio não sabia que a esta de
que ele falava era mais ou menos
um prêmio... E me levou para a
Mayrink Veiga. Enquanto ele
ficou, eu me escorei. Cheguei a
fazer músicas, a trabalhar, mas,
infelizmente, o samba não estava
na moda. E eu voltei pra
Mangueira. Fui ser vigia da
Associação das Escolas de
Samba. A verdade é que o
ambiente favorecia. E assim
nasceu Zicartola. O Nelson
Cavaquinho, o Elton Medeiros, a
moçada se agrupava por ali.
Cartola, você está nesta? O
Sérgio não sabia que a esta de
que ele falava era mais ou menos
um prêmio... E me levou para a
Mayrink Veiga. Enquanto ele
ficou, eu me escorei. Cheguei a
fazer músicas, a trabalhar, mas,
infelizmente, o samba não estava
na moda. E eu voltei pra
Mangueira. Fui ser vigia da
Associação das Escolas de
Samba. A verdade é que o
ambiente favorecia. E assim
nasceu Zicartola. O Nelson
Cavaquinho, o Elton Medeiros, a
moçada se agrupava por ali.
Um samba, uma sopinha quente feita
Pela Zica, e o pagode redondo.
Nessa ocasião um capitalista
muito esperto e frequentador da
roda sacou que, se nós
montássemos um restaurante
com uma comidinha legal, a
coisa poderia pegar. Foi quando
o Angenor virou Cartola. Aliás,
Zicartola. Os homens faturaram
o suficiente e depois entregaram
a bomba para o casal. Ora, eu
toco violão, a Zica só entende de
cozinha. Paguei caro pra saber o
que era boca livre, cheques sem
fundo e fundos sem cheques.
Primeiro, almoço e jantar.
Depois, um violão. Aí, virou
epidemia. E como toda epidemia
que se preza, é necessário um
médico. E a gente, que não
Pela Zica, e o pagode redondo.
Nessa ocasião um capitalista
muito esperto e frequentador da
roda sacou que, se nós
montássemos um restaurante
com uma comidinha legal, a
coisa poderia pegar. Foi quando
o Angenor virou Cartola. Aliás,
Zicartola. Os homens faturaram
o suficiente e depois entregaram
a bomba para o casal. Ora, eu
toco violão, a Zica só entende de
cozinha. Paguei caro pra saber o
que era boca livre, cheques sem
fundo e fundos sem cheques.
Primeiro, almoço e jantar.
Depois, um violão. Aí, virou
epidemia. E como toda epidemia
que se preza, é necessário um
médico. E a gente, que não
entende de medicina, quase
faliu. Mas deixa pra lá. Os
homens que investiram tiraram o
deles? Otimo. Eu virei o Cartola,
manjado na Zona Sul, amigo da
Nara Leão e coisa e tal, sacou?
Fiz minha política e ela acabou
resultando num lugar na Sunab
(lembra?), depois o Dr. Paulo
Egídio — atual governador de
São Paulo — me arranjou um
emprego do qual eu vivo até
hoje: sou funcionário do
Ministério da Indústria e
Comércio. E até hoje sou muito
respeitado, graças a Deus.”
faliu. Mas deixa pra lá. Os
homens que investiram tiraram o
deles? Otimo. Eu virei o Cartola,
manjado na Zona Sul, amigo da
Nara Leão e coisa e tal, sacou?
Fiz minha política e ela acabou
resultando num lugar na Sunab
(lembra?), depois o Dr. Paulo
Egídio — atual governador de
São Paulo — me arranjou um
emprego do qual eu vivo até
hoje: sou funcionário do
Ministério da Indústria e
Comércio. E até hoje sou muito
respeitado, graças a Deus.”
Entre tristezas e
alegrias, o saldo
alegrias, o saldo
“Minha vida é como um filme de
mocinho. Acabei vencendo
quase no final. Tive meningite,
fui manco de uma perna, uso
óculos escuros porque a vista
esquerda não suporta o dia — a
boémia, como diz a Zica —, tive
um problema no nariz que ficou
escuro porque eu não dei luz
aos médicos que me
recomendaram tomar banhos de
raios X, ultravioleta,
infravermelho, sei lá... meu
corpo pagou muito. Mas,
felizmente, sou um cidadão
respeitado, querido pelos jovens
— tive contato com eles nestas
caravanas — gente com quem,
aliás, fui injusto. Os jovens não
se iludem. Sabem de tudo. E
sabem separar a mentira da
verdade. Pura e milagrosa
intuição. Nos jovens estão
nossos futuros sambistas. Que
caprichem cada vez mais e que
tenham a metade da paciência
que eu tive. Eu esperei 40 anos,
meu filho... E triste, mas as
escolas de samba tendem a
acabar. Virar indústria mesmo.
Só os jovens bem intencionados
poderão salvar o samba. A fatura
do samba-enredo é imediata e
mentirosa. Mas virou -um hábito.
Cadê o samba mesmo?”
— Tem muito branco no
samba. Esse branco, meu filho,
você sabe que é uma chamada
concessão poética, tá certo?
(Cartola ri muito)... Essa história
é muito longa. Começa nas pró-
prias gravadoras, que fingem
prestigiar o samba e são seus
mais agudos punhais. Vamos fa-
lar de alegrias? Aí eu falo que a
distribuição do direito autoral
está mais justa, já recebo direitos
da Itália e da França. Longe paca,
né, meu filho? Falo da Zica. Pra
quem fiz um samba jóia. Nós
Dois. Posso fazer um comercial?
Pois esta música está no LP que
gravei. Tem mais duas músicas
que considero entre as melhores
que compus até hoje: Autono-
mia e Verde que te Quero Rosa.
Comprem o disco que vocês
ajudam o Cartola. A última can-
ção é o título do LP.
— Cartola, e os marginais do
samba?
— Meu filho, eu sinceramente
não gosto que falem assim dos
sambistas. Um artista não pode
ser um marginal. Vivo na Man-
gueira muito bem, porque de-
do-duro se machuca. Manero
daqui e dali. Jamais apontei
qualquer pessoa. Falavam O
diabo de Natal da Portela. Tive-
mos uma briga no túnel João Ri-
cardo, porque ele destratou a
Zica. Coisa de cabeça quente.
Natal era uma santa pessoa. Di-
zem que eu não componho mais
com o Nelson Cavaquinho por-
que ele me estarrou um samba. E
verdade, Nelson vendeu um
samba nosso e embolsou a gra-
na. Mas ele sabe que nós conti-
nuamos amigos. Se ele pouco
vem à Mangueira, aí o problema
passa a ser dele. Estou muito
velho pra descer... Mas o Nelson
é boa gente. Gosto dele. Since-
ramente. Gosto dele.
— Cite alguns sambistas quen-
tes.
— Paulinho da Viola, com
quem espero compor alguma
coisa. O Silas de Oliveira, Paulo
da Portela, o Calça Larga, Mano
Décio, João Nogueira, Antenor
Gargalhada, e, naturalmente, o
Nelson Cavaquinho. Claro que
estou esquecendo uma pá de
gente. Eu acho meio maldade
com um velho perguntar por
números ou valores. Esqueci
muita gente, tenho certeza.
Se eu me incluo entre eles? Sei
lá, meu filho. Seria muito in-
justo. O samba entra muito fácil
no meu peito. Vai inchando, in-
chando e se eu não boto ele pra
fora, dia seguinte tem flor no
quintal da Zica. Os mais adora-
dos? Os que eu citei e ainda
lembro de alguns que podem
passar por um arrocho mais sé-
rio. Seja de quem for. Cito o Di-
vina Dama, Sim, O Mundo E um
Moinho, As Rosas Não Falam,
Acontece. Assim, de estalo, são
os meus favoritos. Devo ter co-
metido injustiças. Mas aí não
tem importância porque é co-
migo mesmo.
Músicas para mulheres, fiz
muitas. Mas por um dever de ca-
valheirismo só devo citar a que
escrevi para Zica: Nós Dois. As
injustiças são muitas, mas o que
é que a gente pode fazer. Acho
que as músicas de Nelson Sar-
gento e Carlos Cachaça deveriam
ser muito mais prestigiadas. O
Carlos nasceu na Mangueira.
gravei. Tem mais duas músicas
que considero entre as melhores
que compus até hoje: Autono-
mia e Verde que te Quero Rosa.
Comprem o disco que vocês
ajudam o Cartola. A última can-
ção é o título do LP.
— Cartola, e os marginais do
samba?
— Meu filho, eu sinceramente
não gosto que falem assim dos
sambistas. Um artista não pode
ser um marginal. Vivo na Man-
gueira muito bem, porque de-
do-duro se machuca. Manero
daqui e dali. Jamais apontei
qualquer pessoa. Falavam O
diabo de Natal da Portela. Tive-
mos uma briga no túnel João Ri-
cardo, porque ele destratou a
Zica. Coisa de cabeça quente.
Natal era uma santa pessoa. Di-
zem que eu não componho mais
com o Nelson Cavaquinho por-
que ele me estarrou um samba. E
verdade, Nelson vendeu um
samba nosso e embolsou a gra-
na. Mas ele sabe que nós conti-
nuamos amigos. Se ele pouco
vem à Mangueira, aí o problema
passa a ser dele. Estou muito
velho pra descer... Mas o Nelson
é boa gente. Gosto dele. Since-
ramente. Gosto dele.
— Cite alguns sambistas quen-
tes.
— Paulinho da Viola, com
quem espero compor alguma
coisa. O Silas de Oliveira, Paulo
da Portela, o Calça Larga, Mano
Décio, João Nogueira, Antenor
Gargalhada, e, naturalmente, o
Nelson Cavaquinho. Claro que
estou esquecendo uma pá de
gente. Eu acho meio maldade
com um velho perguntar por
números ou valores. Esqueci
muita gente, tenho certeza.
Se eu me incluo entre eles? Sei
lá, meu filho. Seria muito in-
justo. O samba entra muito fácil
no meu peito. Vai inchando, in-
chando e se eu não boto ele pra
fora, dia seguinte tem flor no
quintal da Zica. Os mais adora-
dos? Os que eu citei e ainda
lembro de alguns que podem
passar por um arrocho mais sé-
rio. Seja de quem for. Cito o Di-
vina Dama, Sim, O Mundo E um
Moinho, As Rosas Não Falam,
Acontece. Assim, de estalo, são
os meus favoritos. Devo ter co-
metido injustiças. Mas aí não
tem importância porque é co-
migo mesmo.
Músicas para mulheres, fiz
muitas. Mas por um dever de ca-
valheirismo só devo citar a que
escrevi para Zica: Nós Dois. As
injustiças são muitas, mas o que
é que a gente pode fazer. Acho
que as músicas de Nelson Sar-
gento e Carlos Cachaça deveriam
ser muito mais prestigiadas. O
Carlos nasceu na Mangueira.
Agúentou o diabo e sempre se-
gurou firme a barra pesada. Me-
recia uma oportunidade. Ele é
um poeta quente. Quentissimo.
— Você acha que já pode
morrer em paz?
— Em paz, eu não vou morrer
nunca. Eu acho a vida um negó-
cio formidável. Quem gosta de
homenagem póstuma é estátua.
Eu quero continuar vivo e bri-
gando pela nossa música. Since-
ramente, não acreditava que eu
ainda vivesse esse tempo de
grande justiça que o povo brasi-
leiro — apesar dos pesares — faz
à música brasileira. Eu não sou
radical. Acho que tudo que é
brasileiro de verdade é bom.
Tom Jobim? Excelente...
Você me vê aqui, numa en-
fermaria do INPS, e haverá de
perguntar. “Cadê os amigos?
Você poderia estar num hospital
particular.” Nada disso. Eu não
incomodo os amigos por pouca
coisa e, além do mais, aqui sou
reconhecido. O pessoal me trata
com muito carinho. Eu acho que
ainda não me acostumei ao luxo.
Qualquer coisa que me destaque
me deixa meio sem jeito. Você
quer um exemplo? A Boate Car-
tola, lá em S. Paulo. Um grupo
de amigos veio de lá pedir con-
sentimento para usar o meu no-
me. Nome? Digamos, apelido.
Pois bem. Aceitei. Topei inaugu-
rar O local, fui pra São Paulo, um
sucesso danado. Na estréia da
boate, eu perdi a voz. Muita
emoção.
— Hoje em dia, eu me cuido
demais. Não frequento a minha
escola. Sou muito ligado à nova
diretoria, mas prefiro o aplauso
distante. Estou evitando emo-
ções maiores. Ainda tenho netos
pra formar. Tenho música pra fa-
zer. Se começo a sentir O cora-
ção formigar, já vou sartando de
banda. Vivi uma vida que — pa-
lavras de Ciro Monteiro — não
resta a menor dúvida. Estou num
saldo adorável. Para muitos,
vencer na velhice significa muito
pouco. Para mim, é a própria li-
ção da vida. Um prêmio ao vivo.
A consciência de que o tudo so-
frido não foi em vão. Já fui um
sujeito muito revoltado. Nos
porões do Cais do Porto, nas
profundezas das escavações. Aí,
eu tentava um samba. Muitos
deram certo, outros ficaram, ou-
tros morreram no assovio. Eu
penso assim. O que tem de ficar,
fica mesmo. O que sobra, morre
num assovio.
Meu filho, agora deixa eu des-
cansar. Estou limpando o esque-
leto para sofrer uma intervenção,
que os homens dizem ser muito
simples. Outro dia li num jornal
que meu estado era muito deli-
cado. Estado delicado, no meu
tempo, meu filho, era gravidez...
gurou firme a barra pesada. Me-
recia uma oportunidade. Ele é
um poeta quente. Quentissimo.
— Você acha que já pode
morrer em paz?
— Em paz, eu não vou morrer
nunca. Eu acho a vida um negó-
cio formidável. Quem gosta de
homenagem póstuma é estátua.
Eu quero continuar vivo e bri-
gando pela nossa música. Since-
ramente, não acreditava que eu
ainda vivesse esse tempo de
grande justiça que o povo brasi-
leiro — apesar dos pesares — faz
à música brasileira. Eu não sou
radical. Acho que tudo que é
brasileiro de verdade é bom.
Tom Jobim? Excelente...
Você me vê aqui, numa en-
fermaria do INPS, e haverá de
perguntar. “Cadê os amigos?
Você poderia estar num hospital
particular.” Nada disso. Eu não
incomodo os amigos por pouca
coisa e, além do mais, aqui sou
reconhecido. O pessoal me trata
com muito carinho. Eu acho que
ainda não me acostumei ao luxo.
Qualquer coisa que me destaque
me deixa meio sem jeito. Você
quer um exemplo? A Boate Car-
tola, lá em S. Paulo. Um grupo
de amigos veio de lá pedir con-
sentimento para usar o meu no-
me. Nome? Digamos, apelido.
Pois bem. Aceitei. Topei inaugu-
rar O local, fui pra São Paulo, um
sucesso danado. Na estréia da
boate, eu perdi a voz. Muita
emoção.
— Hoje em dia, eu me cuido
demais. Não frequento a minha
escola. Sou muito ligado à nova
diretoria, mas prefiro o aplauso
distante. Estou evitando emo-
ções maiores. Ainda tenho netos
pra formar. Tenho música pra fa-
zer. Se começo a sentir O cora-
ção formigar, já vou sartando de
banda. Vivi uma vida que — pa-
lavras de Ciro Monteiro — não
resta a menor dúvida. Estou num
saldo adorável. Para muitos,
vencer na velhice significa muito
pouco. Para mim, é a própria li-
ção da vida. Um prêmio ao vivo.
A consciência de que o tudo so-
frido não foi em vão. Já fui um
sujeito muito revoltado. Nos
porões do Cais do Porto, nas
profundezas das escavações. Aí,
eu tentava um samba. Muitos
deram certo, outros ficaram, ou-
tros morreram no assovio. Eu
penso assim. O que tem de ficar,
fica mesmo. O que sobra, morre
num assovio.
Meu filho, agora deixa eu des-
cansar. Estou limpando o esque-
leto para sofrer uma intervenção,
que os homens dizem ser muito
simples. Outro dia li num jornal
que meu estado era muito deli-
cado. Estado delicado, no meu
tempo, meu filho, era gravidez...
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