Sunday, August 16, 2020

Candeia: Uma Festa que Acabou

PASQUIM

17 a 23 nov 1978



 

Candeia morava em Jacarepaguá,
numa casa rodeada por um quintal
cimentado e, neste quintal, mesas e
cadeiras davam ao ambiente um ar de
botequim de Vila Isabel. Esta
entrevista foi feita lá, entre um
macarrão da melhor qualidade e uma
cabritada bem-sucedida. De meio-dia
às oito horas da noite, tudo falou-se
tudo bebeu-se e, quando terminaram
as nossas obrigações, continuaram
nossas devoções, que a esta altura o
samba comia firme e tinha muto
partido alto feito por especialistas na
matéria, como Casquinha, Chico
Santana e Rufino. Candeia irradiava
estas coisas. Sua casa era uma festa
permanente, mas é de sua intensa
atividade que se fala aqui. E esta
festa acabou duas semanas depois
que Simon Khoury, Lena Frias, e eu
fizemos esta entrevista. — (Roberto
Moura)

 

 

Roberto Moura — Fala, Candeia.

CANDEIA — Nasci em Osvaldo Cruz,
17 de agosto de 1935. Lá assistí a muitas
cenas que depois foram marcantes,
como a Guerra —, as pirâmides...


Ricky — Pirâmides?

CANDEIA — Dava-se o nome de pi-
râmides àquelas pilhas de materiais
coletados durante & guerra, ferro, lata,
borracha, não-sei-o-que... Naquele tem-
po Osvaldo Cruz era campo, tinha ca-
valo, trem de maria-fumaça, era roça,
mato mesmo. Os pontos marcantes era a
Igreja de São Mateus, o Portela e a casa
de Dona Fster, o lugar onde todos
frequentavam.

Lena Frias — Uma casa de candom-
blé.

CANDEIA — Tinha o seu lado místico
entretanto não era de candomblé. Lá tive
oportunidade de assistir às serestas e
aos chorinhos, freqüentados por exem-
plo por Luperce Miranda. (canta): “Há
nos teus olhos a luz/ que ilumina e con-
duz''/ uma nova ilusão”. Também Jair
do Cavaquinho, Zé com Fome — depois
Zé da Zilda — Paulo da Portela, Píxin-
guinha, Começava com o samba, na
frente tinha o chorinho, mais atrás o
baile de salão, também sanfona, e lá
atrás a escola de samba, a batucada
violenta e da pesada. Enfim, havia uma
série de ramos e influências da música
brasileira todos juntos. Depois que fiz o
ginásio fui trabalhar no Departamento
de Obras e Saneamento do Ministério da
Aviação, na Praça Pio X. Tenho boas
recordações de lá, de onde sai pra fa
ser um concurso no DASP pra Polícia
Especial.


Roberto — A famosa PE.

CANDEIA — Só que não tive a honra
de participar dos grandes nomes da PE
como Mário Vianna porque quando eu
entrei já não tavam mais. Sivuca já era
da PE mas como estagiário, fez concur-
so do DASP junto comigo. A PE foi
criada por Getúlio Vargas como uma
polícia de elite o tinha esso negócio de
não entrar preto. (enfatiza) NEGRO
NÃO ENTRAVA! Mas eu falei: “Se
abriu o concurso em igualdade de con-
dições, tô aí pra disputar minha vaga”.
Passei e fui o terceiro colocado. Prova
durissima, malandro, foi mole não,
Exígia muito fisicamento, tinha que ser
atleta mesmo, mas como eu tinha
1.85m... hoje em dia tô gordo mas já fui
forte.


Simon Khoury — Foi o primetro
problema que você teve pelo fato de ser
negro?

CANDEIA — Não tive esse problema.
Sabia que ele existia mas eu o superei.
Competindo em igualdade, ganhava
quem tinha o melhor peixe pra vender,
Quer dizer, mem próprios colegas é que
diziam que lá não pintava negro.


Simon — E no colégio, na rua?


CANDEIA — Sinceramente, nunca
senti essa carga diretamente porque
sempre tive diálogo com as pessoas,
mas percebia que isso existia. Uma vez
fiquei chateado porque quis entrar num
prédio lá na Av. Atlântica e o cara falou
que eu tinha que entrar pela porta de
serviço, pelo fato de ser negro; mas
argumentei, me impus, e acabei
entrando mesmo como eu tinha que
entrar: pela porta da frente, como gen-
te. Outra vez fui fazer uma diligência e
fui maltratado porque as pessoas não
queriam entender como é que um negro
tomava a iniciativa de fazer aquilo. Pra
mim é mais importante fazer essas
colocações que levar o papo pra aspec-
tos individuais da pessoa física. Falar de
Candeia não tem tanta importância
quanto falar sobre minhas indéias.

Lena — Mas é fundamental fixar tua
ligação com a Portela.

CANDEIA — Meu pai fazia parte da
Comissão de Frente de lá. Antigamente,
as festividades eram mais fáceis, não
tinham caráter de festa, mas de reunião,
havia uma aproximação entre as pes-
soas. As coisas eram mais lentas e ti-
nhamos condições de ter um contato
mais constante com as pessoas queri-
das. Hoje essas imposições todas nos
afastam e ficamos às vezes seis meses
sem vermos os amigos. É uma loucura,
um ritimo vertiginoso, e as pessoas
passam correndo. Sinto isso com o da
Viola, um amigo de que gosto imen-
samente, mas sei lá, a gente fica três ou
quatro meses sem se falar.

Simon — Seus pais não ficaram
apavorados quando você resolveu se
dirigir pra polícia?

CANDEIA — Não houve nenhuma
pressão. Todas os pais desejam que o
filho progrida, melhore na vida, e sen-
tiram que aquilo era melhor pra minha
afirmação.

Lena — Mesmo porque ser policial era
uma das raras opções.

CANDEIA — Dentro da polícia, como
em qualquer atividade, existe o bom
caráter e o mau caráter. Temos exce-
lentes policiais. Em todas as atividades
as coisas dependem da educação e do
interior de cada um. Talvez pela minha
ligação com o meu ambiente, fui um
policial que atuava em prol daqueles que
necessitavam de um apoio ou esclare-
cimento, e SEM FAZER MÉDIA. Eu
não podia modificar as posições nem
contestar as leis e os regimes existentes
— fui policial pela necessidade de so-
breviver — mas não fiz disso um marco
pra pressionar ninguém. Tanto é ver-
dade que mesmo sendo policial consegui
manter a popularidade que sempre tive
dentro da Portela ou de outras escolas
como o Império ou a Mangueira. Gozo
até hoje desse respeito porque nunca fui
de plantar maconha dentro do bolso de
ninguém, nunca forcei barra pra criar
flagrante de bicho... a gente disputava o
Flagrante mas se perdesse, acabou.
Havia o respelto natural de ser humano
pra ser humano entre o cara e policial e

o cara que não era mas merecia respeito
por sor tão gente quanto eu. Até porque
fui criado no meio de bandido e pisto-
leiro, tem colega meu que tirou 15 ou 20
anos de cana, lidei com o pessoal de
favela, de morro, que tinham seus vícios
por lá e me respeitavam por eu não ter.
Quando tinham que fazer suas transa-
ções saiam de perto de mim porque
sabiam que não me adaptava àquilo.
Nunca fiz da polícia motivo pra per-
seguí.ios, pelo contrário, em algumas
ocasiões me indispus lá. O cara por ser
negro e andar de sapato branco, elemen-
to de escola de samba, pra sair no car-
naval, era visto como
aquele cara,
havia a convicção de que aquele elemen-
to era um marginal. Eu entrava em
choque justamente por achar que os
maiores marginas — até hoje os
maiores criminosos desse pais — usam
pastas e gravatas. Colegas meus diziam
assim: “Já vai você soltar Seu Camilo
porque ele sai na bateria! Já vai você
bancar a Irmã Paula porque o cara sai
na ala de não sel-de-quê’’! Eram colsas
de gozação mas que demonstravam
alguma coisa.

Lena — Você respeitava o cara de
sapato branco.

CANDEIA — Lógico que nenhum de
nós pode agradar a gregos e troianos,
mas de uma maneira geral, graças a
Deus, consegui manter meus amigos em
tudos os lugares. Depois que sofri o
acidente, um camarada chegou-se pra
mim: “O senhor se lembra de mim?
“Não... Póxa, o senhor me prendeu."

“Prendi você, é?" “Foi, o senhor tava
com uma turma que acabou me pren-
dendo.” “O que que houve?" “Não, mas
não tem bronca não. Naqueia época o
realmente era pilantra. Seu Candeia,
sabe que depois dessa é que coloque
minha cabeça no lugar? Merecia aquela
vadiagem porque era pilantra, hoje em
dia tô na minha, negócio tranquilo, sem
sujeira.” São certos casos da adversl-
dade que ocorrem na nossa vida com um
lado positivo.

Simon — Foi o acidente que fez com
que você fosse ao fundo da nossa cultura?

CANDEIA — Não fui eu quem me mo-
difiquei us coisas a meu redor é que se
modificaram muito. Sempre mantive
uma coerência, minha formação sempre
foi isso assim. Me recordo bem como era
a formação das pessoas antigamente
quando a palavra dos homens valia.
Hoje, tem que assinar um montão de
papelote e assim mesmo ninguém ga-
rante ninguém. Me recordo que tinha a
venda do Seu Manoel, um português, e
do outro lado o botequim do Seu Saraiva,
outro português. O seu Manoel, que
tinha condições de ter uma bruta ge-
ladeira, não vendia cerveja por respeito
ao camarada do lado, pra não tirar sua
freguesia. Isso em Osvaldo Cruz, na
minha época.

Roberto — E vindo de um português.

CANDEIA — As vendas ficavam
abertas até duas boras da manha. Meu
pai saía de casa pra faser umas com-
pras pro almoço e antes de duas horas
não pintava em casa. Eu até buscava as
compras pra pelo menos adiantar mas
eu também ia chegando lá me prenden-
do um pouco. Via aqueles negócios di-
ferentes, uma linguiça frita na pedra de
mármore... jogavam um alcóol em ci-
ma, lascavam fogo... subia aquele fo-
garéu, meu irmão! Pagode comendo.
Vinha um pão e eu beliscava ali mesmo.
E seu Manoel só não botava a cerveja
pra não roubar a clientela do seu
Saraiva. Havia um respeito mútuo,
natural entro as pessoas. Não fui eu
quem modifiquei, sempre mantive uma
coerência dentro daquilo que sei, lógico
quo fui adquirindo otros valores e
conhecimentos, mas as coisas é que
foram modificadas ao meu redor. E eu
não tinha muita leitura, até porque todos
esses hábitos de cultura afro-brasileira
são fornecidos verbalmente.

Lena — É uma cultural oral.

CANDEIA — Ela se transmite de pai
pra filho, do pai de santo pra filha de
santo.

Simon — Mas eu aprendi muita coisa
no seu livro.

CANDEIA — É verdade, mas hoje já
há uma necessidade de escrever e citar
essas coisas para não se afastar de-
masiadamente dessas formações.

Roberto — Em que ano você entrou
pra Portela?

CANDEIA — Me sinto integrado na
Porteia desde que nasci. Quando eu
tinha por volta dos dez anos eu ia quase
que escondido pra assistir lá na Por-
telinha, ao lado do Bar no Nozinho, o as
coisas lá me impressionaram vivamen-
te, até as vestimentas das pessoas eram
interessantes, os tamancos de portu-
guês, as baianas como Vicentina,
Braulina, chinelos de couro de cabrito,
turbantes...

Lena — Era normal andar assim?

CANDEIA — Era o cotidiano, nosso
ambiente. Passei a sair oficialmente na
Portela em 1949, participando do último
desfile na Praça Onze, quando foi
inaugurado o prédio da Última Hora que
pra nós foi um deslumbramento, um
negócio envidraçado, três pavimentos.

CANDEIA — Nasci sambista! Com 13
anos eu tava desfilando na Portela com
um samba de Manacéia, uma home-
nagem a Getúlio Vargas, a volta do filho
Pródigo, negócio assim. Saí de ma-
cacão como se fosse um trabalhador,
com uma chave na mão, bonezinho de
operário, foi um negócio bacana, mes-
mo porque não havia muita variação de
fantasias. As escolas do samba anti-
gamete eram formadas pelas baianas,
pelo coro masculino com duas varie-
dades do fantasias e a bateria. Isso aí.
Vinha o Mestre-Sala, a Porta-Bandeira e
à Comissão de Frente. Não tinha essa
diversificação de alas. Esse foi meu
primeiro desfile profissional, entretanto,
eu adorava a carregar corda pela Portela,
carregar a gambiarra pra dar a ilu-
minação, tudo isso antes deu sair fan-
tasiado, participando do coro. Mesmo
antes eu pintava nessa, adorava ficar lá
com o pessoal.

Lena — Já compunha?

CANDEIA — Ainda não. Depois co-
mecei a compor mas não pra mostra-
gem ou publicamente. Sentia vontade de
cantar e me concientizava de que tava
catando um negócio que não era dos
outros não, que era meu, meio sem pé
nem sentido, boi com abóbora, mas
Vendo de mim.

Roberto — Como é que você avalia o
Papel do Paulo, um dos fundadores da
Portela e responsável pelos acréscimos
às escolas de samba?

CANDEIA — O papel dele é mere-
cedor de todo o reconhecimento público.
Foi um grande craque numa época em
que o futebol não estava tão valorizado
profissionalmente, pra usar a imagem
do esporte.

Roberto — Sérgio Cabral e eu acha-
mos que seu papel seria o mesmo sem
ter feito um samba, ou seja, seu pape! é
maior como um grande líder e um ca-
talizador de todas as tendências das
escolas de samba do que como com-
positor.

CANDEIA — Paulo realmente tinha
uma preocupação muito maior com as

coisas de sua gente e do seu meio-am-
biente do que com ele mesmo em termos
de se identificar como artista, mas
acontece que fez letras maravilhosas, A
Funarte está lançando agora um con-
curso de monografia sobre Paulo da
Portela. No “Axé”, disco que tô lançan-
do pela Warner, temos uma música
chamada “Ouro, desça do seu trono”,
onde Paulo já fas uma espécie de protes-
to contra o poder que vem pressionando
as camadas menos favorecidas. Há
pouco tempo, encontrei um recorte do
Diário Carioca dizendo que Paulo foi
convidado pra participar do Partido
Trabalhista Nacional e em seguida tem
uma entrevista dele com diversas rei-
vindicações que por incrível que pareça,
mesmo naquela época, já tinham o
sentido do trabalho do Quilombo. Paulo
pedia que se desse aos sambistas os
meios sociais, a urbanização da fa-
vela, educação pra os seus filhos.
Ele tinha essa preocupação, não era
simplesmente um cara que can-
tava samba. Se vocês procurarem o
trabalho do Paulo vão encontrar lntras
maravilhosas
(canta): “Ouro, desça do
seu trono/ venha ver o abandono/ de
milhões de almas aflitas/ como gritam/
Sua Majestade a Prata/ Mãe ingrata,
indiferente e fria/ sorri da nossa ago-
nia"”. Isso om 1930.

Simon — Foi você que sentiu que era
um compositor ou alguém que ouviu e
disse que era bom?

CANDEIA — Bom, nunca cheguei à
conclusão de ter feito obra nenhuma. Até
hoje eu faço e as pessoas é que dizem,
dão opinião, mas eu mesmo não digo:
“Isso aqui é o quente”, até porque há em
todos nós uma tendência de superar
aquilo que já fizemos. Nunca nos damos
por satisfeitos, se fazemos um trabalho
hoje, amanhã queremos fazer um me-
lhor, se aperfeiçoar naquilo que faze-
mos. Acho que seria muito fechado
chegar e concluir sobre uma música.
Têm coisas que a gente não pode ge
neralizar porque os objetivos são dife-
rentes. Não posso fazer um samba do
terreiro ou um partido alto porque me
deixaria condicionado, não dá pra fazer
com uma estrutura muito rica o har-
mónica, se ganha muito babado e dis-
sonáncia não é mais partido alto. Não
requer também uma letra poética muito
profunda porque é a forma do povo falar
e dizer. Mas dentro da tua pergunta,
Simon, fiz uma música chamada “Eu
quero com ternura”, cantada na Portela
em 53, e percebi que tinha feito uma
música que o pessoal assimilou. O maior
prêmio para o compositor é quando fica
conhecido. Isso vale pro artista de um
modo geral, que tem que manter o
espírito artesanal o amadorístico no
sentido de amar aquilo que faz, sem se
deixar ser metrificado. Tem que ter
aquela posição de coração, amador no
sentido de amar.

Lena — Quais são os fundadores da
Portela?

CANDEIA — Os três mais importan-
tes são Antonio Caetano, Rufino e Paulo.

Roberto — Depois que Paulo morreu a
liderança passou a Natal

Simon — Paulo da Portela... Natal...
Candeia também seguiria uma linha do
mesmo prestígio?

CANDEIA Em absoluto. Natal foi o
maior lider da Portela e atualmente
estamos sentindo sua falta. Não faço
nada pra me equiparar a Natal ou Paulo
da Portela. Eu sou eu, eles são eles.
Tenho verdadeira admiração por todo o
pessoal do samba que a gente chama
“da antiga”, o mostro isso no meu
trabalho, mas sem segundas intenções.

Simon — Você admite que eles tenham
cometido alguns erros? E você, tem
cometido erros?

CANDEIA — Ô, só cometo! Todo dia a
gente tá aprendendo coisas novas e pode
modificar posições. Nesse aspecto a
gente tem que ser maleável, não po-
demos ser fechados porque a vida é a
melhor universidade que temos.
Ninguém é dono da verdade absoluta,
com pontos de vista já firmados e con-
ceitos rigidamente estabelecidos. Tamos
sempre dando mancada, dando fora,
mas tamos sempre aprendendo.

Roberto (correndo ao portão) — Tá
chegando Alberto Lonato, Chico Santana
e Nelson Rufino! (vários abraços e
saudações. Candeia manda servir mais
uma rodada de cerveja e batida de li-
mão)

Lena — Você acha que “Axé'' é seu
melhor trabalho em disco?

CANDEIA — Olha, gosto muito, mas
gosto muito também do “Samba de
Roda". Não tô dizendo que um seria
melhor que o outro mas no “Samba de
Roda'' a gente conseguiu fazer o que
queria por não ser um disco de caráter
comercial.

Roberto — Por que fazer um disco de
samba onde não tem faixas? Isso não
vai dificultar a execução no rádio?

CANDEIA — Não é que o disco seja
sem faixas, Tem um lado onde a música
foi ficando comprida, emendando um
pedaço no outro, e não colocamos faixas
pra separar; mas isso não é nenhuma
bossa, apareceu por causa de uma ne-
cessidade que sentimos na música,

Lena — Olha, Casquinha chegando,
meu irmão!

CANDEIA — A criação do Quilombo
foi por amor no sambista o à nossa gente
e não pra competição, foi pra conscien-
tizar pra preservar nossa cultura, em
defesa do que representa Rufino,
Santana, Lonato, essa rapaziada jovem
aí. Quilombo é uma tentativa de rea-
bilitar o espirito comunitário da nossa
gente e de sacudir a consciência desse
pessoal pra preservar nossa cultura. Tá
correndo a favor da gente mesmo. Vocês
estão vendo que bem ou mal estamos
conseguindo transmitir esse tipo de
preocupação a outras entidades que
atualmente vêm se manifestando.

Roberto — Você tem consciência da
mudança em relação ao nome Candeia
depois da fundação do Quilombo?

CANDEIA — Tenho. Minhas respon-
sabilidades cresceram por demais. Foi
um desafio. A Quilombo cresceu na
medida em que colocamos aquilo que
criticamos através do palavras dentro
de medidas palpáveis. Transformamos
nossa critica em algo positivo. Agora me
sinto cada vez mais envolvido e respon-
sável por levar a coisa até o fim.

Lena — Quilombo hoje é muito mais
um centro de cultura do que propria-
mente uma escola de samba, nê.

CANDEIA — Perfeitamente.

Roberto — Eu insisto em falar no
Natal. Qual foi o saldo que deixou de sua
liderança na Portela?

CANDEIA — Hoje chegamos à con-
clusão que o saldo da participação do
Natal também não é tão negativo assim.
Discordamos de muita coisa que tenha
feito mas reconhecemos que foi um
elemento positivo e que seu saido foi
favorável.

Lena — Positivo e favorável sob que
aspectos?

CANDEIA — Pelo menos o poder de
direção ainda estava dentro do nosso
meio-ambiente, não foi qualquer pessoa
que chegou lá assumindo a voz de co-
mando.

Roberto — Quem é que você realmen-
te admira da velha guarda?

CANDEIA — A maioria tá falecida.
Gosto muito do Zé com Fome, Paulo da
Portela e um vivo, Aniceto do Império,
da escola do partido alto que me satisfaz
porque tem improvisação mesmo, não é
aquela onde os versos já vem como
carta marcada. Isso na hora do samba,
porque pra estúdio o esquema nos impõe
condições como limite do tempo o gastos
financeiros,e já temos que ir com uma
base preparada, Aniceto representa algo
constante na formação do partido alto.
Gosto também de toda a Velha Guarda
da Portela, nomes como Manacéia,
Alcides, Rufino. Esse ai (aponta para
Rufino) apesar de ser compositor se
preocupa mais com seu papel de líder
porque sabe atrair pra si grande dose do
simpatia natural.

Roberto — E de outras escolas?

CANDEIA — Gosto muito do Zinco,
um compositor desconhecido.

Roberto — Que João Nogueira re-
gravou.

CANDEIA — Giliberto Messias, Silas
de Oliveira... Mas minha influência
mesmo veio do pessoal da Portela.

Lena — Era a brincadeira e o samba
pelo prazer de sambar.

Roberto — Hoje a situação mudou
radicalmente e o samba é comercial-
mente viável. Há alguns desses novos
autores que te impressionam?

CANDEIA — Olha, depois do da Viola
apareceu muito pouca gente pra chegar-
mos a uma conclusão. Tem aparecido
sim, mas sem manter o mesmo equi-
líbrio, Às vezes aparece um compositor
com uma grande obra mas depois não
há uma seqüência natural. Posso citar o
Wilson Moreira, um compositor que
incentivei, que tem um talento que é
todo dele.

Lena — Um melodista fantastico.

Simon — Se houvesse possibilidade de
você fazer uma parceria com Chico
Buarque, Milton Nascimento, Caetano
Veloso e João Bosco, com qual você
teria maior analogia?

CANDEIA — Com Milton talvez não
desse. Respeito muito seu trabalho mas
eir tá numa, de harmonia e vocaliza-
ções, e eu tó noutra, mais do coração.
Chico é simplesmente gênio e não tenho
condições de fazer música com génio.
Caetano também sinto que não daria,
embora ele tenha uma música... (canta):
“É de manhá/ é de madrugada é de
manhã”. Nisso ou sinto algo que se
aproxima. (canta) “O samba vai cres-
cer / quando o povo perceber / que é o
dobro da jogada”. Mas depois tem ou-
tras coisas que não me dizem nada. João
Bosco é muito bom, gosto dele, mas não
sei se eu podia fazer um negócio pra
casar com a dolo, que fas uma colabo-
ração um pouco temática com uma
melodia repetida, enquanto eu gosto de
diferenciar.

Roberto — Vamos, então, enumerar os
seus parceiros.

CANDEIA — Meu parceiro mais
marcante, devido aos nossos laços é o
Casquinha que taí presente. Tenho
muita música no baú, uma com Chico
Santana, uma com Monarco.

Lena — E este ano inaugurou a par-
ceria com Martinho da Vila.

CANDEIA - Tem Wilson Moreira,
Paulinho da Viola... Sou amigo do
Martinho há muito tempo mas nunca
tínhamos feito um trabalho junto. Esse
ano já tivemos duas parcerias gravadas,
uma pela Beth Carvalho é outra por ele.
Aconteceu.

Simon — Se Marcos Tamoyo te
encomendar uma música demora
quanto tempo pra entregar?

CANDEIA — Não vai sair. (alguém
puxa um cavaquinho e começa a afinar
)

Simon — Alguma vez alguém pegou
uma música sua e disse que já tinham
feito alguma coisa parecida?

CANDEIA — Já. Ocorre o seguinte:
havia uma União entre nós compositores
em Osvaldo Cruz que reunia eu,
Casquinha, Zé Keti, Gugu e outros, e
todo final de semana havia um desafio,
uma brincadeira, onde cada um tinha
que mostrar uma música nova. Nossas
ocasiões acontecia da mímica de fulano
estar parecida com a de sicrano mas
tínhamos de ter a coragem de depois da
coisa feita rasgar tudo e abandonar a
música. Era um reparo pessoal que a
gente sentia por uma questão até de
validade pessoal, de não fazer algo pa-
reçido com uma música já feita.

Simon - Já aconteceu contrário?

CANDEIA — Ah, nego tá entrando
vigorosamente em cima dos outros, nego
falando igual, cantando igual, usando
meus acompanhamentos, a mesma
coisa,  mesmo riso. Martinho criou um
padrão pra atender ao comércio e agora
tá sofrendo muita pressão por causa de
uma porção de cópias. Nesse último
trabalho é que tá tomando uma posição
diferente que nego não vai ter condições
de fazer igual porque precisa ter fun-
damento, vínculo e raizes. (o cava-
quinho rola e começa uma contoria no
fundo)

Roberto — A Quilombo não transfor-
mou-se também num núcleo de resistên-
cia contra esse entreguismo que é a
discoteca?

CANDEIA — Não é só contra a dis-
coteca, que surgiu depois. Nossa filo-
sofia é lutar contra qualquer tipo de
influência, porque quando mudarem
esse nome de do discoteca pra outra coisa

continuaremos com a nossa consciência
e trabalho formados. O processo de
informação que chega à gente é real-
mente desigual. Por causa dos órgãos do
comunicação somos levados a isso.
Vocês viram a exploração que houve há
pouco tempo com o falecimento do Elvis
Presley? Todo mundo explorou o fato,
venderam camisa, venderam disco,
venderam tudo. O processo de comu-
nicação abrange esse tipo de coisa com
muito mais ênfase do que as coisas
nacionais. Quero chamar a atenção dos
nossos jovens universitários, que são
mais responsáveis, que dentro de der
anos estarão com a incumbência de
dirigir esse pais, para o fato de que
multas vezes são levados a fazerem
coisas quase que inconscientemente.
Você vai na UERJ, na PUC, na Federal,
e encontra jovens com camas escritas
CAMBRIDGE: Por que não botam o
nome da universidade deles? O cara tá
sofrendo uma lavagem cerebral sem
saber porque, pó. Já observaram isso?
E olha que são gente de escolaridade,
não são neguinho analfabeto da favela
não. Deviam entender que esse tipo de
coisa fere frontalmente nossos princí-
pios como povo e como nação.

Roberto — Sua posição hoje é a de um
ideólogo da resistência da raça negra.
Qual sua posição em relação aos outros
grupos congêneres? Por que ao mesmo
tempo que existe a Quilombo cultuando
o maculelê, a capoeira e o jongo, existe o
PCN exibindo “Wattstax''?

CANDEIA — Podemos percorrer
caminhos diferentes mas nossos obje-
tivos são idênticos. Tudo me leva a crer
que a maior diferença que existe nis-
so tudo é o fato deles so sentirem um
pouco fechados, fazendo reuniões mum
aspecto muito elevado e intelectual,
enquando o Quilombo procurou se
identificar com o pessoal da favela,
gente que realmente precisa ser cons-
cientizada. Não são pessoas que alcan-
çaram um status, que podem se reunir
ao meio-dia em qualquer ponto da ci-
dade, encostando seu carrinho na cal-
çada.

Roberto — O pessoal da Quilombo tem
consciência de que com o consumo da
discoteca estamos lidando com dinheiro
que vai embora?

CANDEIA — Podem não ter essa
consciência mas percebem claramente a
necessidade de organizar, participar, se
congregar, pra conseguir mais adeptos.
O pessoal da Quilombo não é diferente
do de outras escolas de samba e temos
que tirar certos conceitos fechados ou
certas posições que não tavam levando a
nada pra levantar no interior de cada
individuo esse sentido de bras idade.

Roberto — Quem são os fundadores da
Quilombo?

CANDEIA — Juarez Barroso Lena
Frias, Paulinho da Viola, Elton
Medeiros, Monarco, Waldir, um esti-
vador do cais do porto que é presidente
da Quilombo, João Batista, Jorge Cou-
tinho… A primeira pessoa com quem
conversei sobre a idéia de fazer o Qui-
lombo foi Juarez Barroso, que me deu
uma espécie de aval. Passei noites de
insônia rolando de um lado pro outro
com essa preocupação, pensando que o
poder sobre as escolas de samba saiu da
mão dos verdadeiros homens que fi-
zeram essas escolas. O negócio tava
sendo feito quase que disfarçadamente,
Então pensei num movimento que seria
um centro de preservação da cultura
afro-brasileira.

Roberto — Se a Quilombo acabasse
nesse momento...

CANDEIA — Já teria prestado ser-
viços e apresentando um saldo positivo.
De uma certa maneira a Quilombo já
conseguiu bagunçar uma série de
Estruturas que tão muito preocupadas
conosco. Hoje estamos mais preparados
pra receber qualquer manifestação. É o
tal negócio, faço muita fé na nossa ju-
ventude. Afinal de contas, são eles que
vão dirigir nossa nação. Já não te-
mos fé nos caras atuais. Se não temos
fé na juventude, tamos roubados!

Simon — O movimento Black Rio tá
mais pra cá ou pra lá?

CANDEIA — Contesto é protesto
contra os meios que usam, mas no sen-
tido de reabilitar o sentimento comu-
nitário da juventude negra esse movi-
mento se justifica. Não tô fazendo
louvação porque sou contra esse mo-
vimento mas devemos cobrar muito
mais em termos de brasilidade dos
roqueiros, filhos de papal, donos de

motoca, que têm poder aquisitivo pra ir
a discotecas e que têm saúde porque
compram proteinas. Proteinas custam
dinheiro, pô! Devemos cobrar muito
mais deles do que do neguinho semi-
analfabeto que vai pro bléqui.

Lena — No momento que estourou
essa coisa todo mundo se prontificou a
levantar contra a garotada bléqui. Pois
bem, nessa mesma época Candeia abriu
as portas da Quilombo pra essa garo-
tada e espalhou-se ate o boato falso de
que dentro de lá tocava-se soul music.

CANDÉIA — Era pra eles irem pra lá
mas pra entrar na nossa. Pra jogar
capoeira.

Lena — Os meninos iam pra soul
music porque achavam que as escolas
de samba estavam roubadas e que não
havia mais lugar pra eles lá. Agora tem
garotada na Quilombo fazendo jongo e
maculelê.

CANDEIA — A única coisa que pe-
dimos foi que não fizessem um baile
biéqui.

Lena — Joaozinho Trinta afirmou que
quem gosta de pobreza é intelectual e
que pobre gosta e de luxo. É claro que
isso é um sofisma mas está sendo usado
como argumento pelos domos do dinheiro
que atuam dentro do samba.

CANDEIA — Então vou tomar mais
um limão pra ficar bom, Tem um ge-
linho aí, meu filho? Temos que analisar
a coisa sob dois aspectos distintos. Tá
havendo uma mania aí de discriminar
as pessoas, pondo povo de um lado e
intelectual de outro. Vejam bem:
“Intelectual gosta de pobreza, povo
gosta de luxo". Sente-se nisso uma
dessas frases de efeito que não levam a
nada. Parece que intelectual não faz
parte do povo e que entre o povo não tem
intelectual. Tão vendo a sacanagem?
Em segundo lugar, como pode o ope-
rário gostar de luxo se não conhece essa
sofisticação? Não tem Mustang, não
come caviar, não tem ar condicionado,
pó, não pode gostar de uma coisa que
não conhece. É uma frase falsa, sim-
plesmente de efeito, que não se casa à
realidade brasileira. O operário não quer
andar de Mustang, quer é viajar como
gente e não como gado na Central do
Brasil, quer chegar em casa e ter a
mulher dele com feijão e carnezinha, os
filhos dele limpos e alimentados. Não
quer luxo, quer que os filhos tenham
acesso à escola. Isso é a base para a
sobrevivência natural do ser humano. O
povo quer viver e que o deixem em paz.

Lena — No Brasil, existe discrimi-
nação racial ou discriminação social?

CANDEIA — Existe a discriminação
racial mesmo. O fato de multa gente
querer atenuar o problema dizendo que
é discriminação social.

Roberto — Dizer como o Simonal que
onde preto pobre não entra branco pobre
também não entra.

CANDEIA — Né verdade, não. O
aspecto social está interligado ao
aspecto racial. Desafio vocês a encon-
trar uma manchete dizendo que uma
loura de olhos azuis tenha sido barrada
ma porta de um hotel ou de uma boate.
Nem um japonês. Quando a gente fala
nisso as pessoas ficam querendo fazer
média, e aqui no Brasil têm coisas onde
pra fazer média você ganha fácil. A
posição de discriminação existe, é
flagrante, e a gente percebe isso,
embora há pessoas que não têm cora-
gem de encontrar esse problema aber-
tamente. Basta dizer que esse tipo de
matéria, se não tivesse fazendo pro
PASQUIM, outro jornal não publicaria.
Não têm coragem de colocar o problema
pra chamar a atenção das pessoas por-
que estão querendo fazer média. Ora, o
que se está querendo levar é que o negro
faz parte da maioria dos oprimidos, das
pessoas que vêm sofrendo as pressões
econômicas. Mas não se pode distanciar
o problema racial do problema social,
assim como a pobreza não está distante
da doença — o paupérrimo geralmente
está doente porque não tem dinheiro, pô
— é nas camadas menos favorecidas da
sociedade o negro é maioria. A renda
dividida pela Nação ainda não o atingiu.
Por isso, sou da opinião que negro nes-
as eleições deveria votar em negro.
Brancos da classe média deveriam
votar em negro. Ricos conscientes de-
veriam votar em negro. O negro é o
reflexo do povo em termos de aspecto
social. Se o governo realmente quiser
transmitir essa essência de populari-
dade deve colocar ministros e asses-
sores negros. Temos elementos de cor

em todos os aspectos da ciência mas não
se ve essas pessoas fazendo parte da cú-
pula. Conheço ricos milionários que estão
identificados com essa chama de li-
bertação. É lógico que por eles não po-
dem resolver os problemas da Nação
mas não hesitaram em ser um pou-
quinho menos ricos para poder dividir
mais. Se esses estão dispostos a isso por
que a maioria não quer fazer?

Chico Santana — Mas se derem essa
sugestão são considerados subversivos

Roberto — Hã uma discriminação
racial também na manipulação dos
meios de comunicação? Os programas
de televisão não deixam de divulgar a
melhor música popular brasileira?

CANDEIAS — Bráulio Pedroso queria
fazer uma novela com colocações do
afro-brasileiro onde os atores seriam
negros. A Globo vetou alegando que não
tínhamos atores negros suficientes e
preferiu dar lugar às discotecas. Entrou
o Dancin Days e Bráulio Pedroso foi
obrigado a escrever uma história nas
coxas, o tal do Pulo do Gato que não
aconteceu borra nenhuma. Essa dis-
criminação se verifica em tudo quanto é
setor. Não entendem que só quando o
negro puder participar da classe média
é que o país vai pra frente, que quando o
negro tiver condições de acesso à par-
ticipação econômica haverá menos
pobres, pô.

Lena — Você tem alguma idéia nesse
sentido?

CANDEIA — Além do Quilombo tenho
muita idéia na cuca, como a Fundação
do Negro, atuando em todos os sentidos.
Não é pra fazer paternalismo não, é pra
entrar na área econômica disputando
palmo a palmo em termos de mercado.
Uma porção de coisas pode ser feita.

CANDEIA — Bom, as pessoas que
estão no meu redor é que poderiam
responder porque eles é que percebe-
riam. Ás vezes discuto com as pessoas,
xingo, cobro, esquecendo que sou um
homem na cadeira de rodas. Tenho a
impressão até que se tivesse que sair no
pau eu sairia.

Roberto — Então, isso te intl-
mida?

CANDEIA — Respondi no samba que
não devo me abater. A gente aprende
que o sofrimento purifica a alma. Isso é
meio místico mas é verdade. O sofri-
mento nos leva a uma evolução que nos
ajuda a tirar bom proveito da adver-
sidade.

Roberto — Você é feliz?

CANDEIA — Sou feliz porque tenho a
consciência de que ninguém tem a fe-
licidade completa. Todo mundo carrega
a sua cruzinha, quando não está exa-
tamente em si está em alguém. Ser
homem com saúde e dinheiro no bolso é
fácil, o negócio é mostrar que tem cu
lhão na hora de ter uma doença ou de
tirar cadeia. Na hora da adversidade é
que a gente tem que mostrar que tem
axé.

Roberto — Você aprendeu isso com
bandido?

CANDEIA — Aprendí. É o cara entrar
em cana e so firmar consciente daquilo
que aconteceu, saindo dali pra outra,
lutando pela vida e pela sobrevivência.

Lena — Por que você é um homem tão
visado, em certas áreas até atacado?

CANDEIA — Começa porque não faço
média. Assumo as posições que devo
sem pensar que vão discordar. Por
exemplo se você perguntar pra determi-
nados elementos que querem fazer
média qual é sua religião eles pra
agradar vão dizer que são católicos
apostólicos romanos com isso matando
logo qualquer tipo de especulação e
conseguindo satisfazer àquilo que a
sociedade padrão quer nos impor. Eu
não, sou amigo dos cantos, dos meus
orixás, e acabou. Essa posição desa-
grada porque é a do cara que assume.

Lena — Então, você é um contestador.

CANDEIA — Não, sou franco-atira-
dor.

Roberto — E pela sua coragem se
transformou num alvo fácil.
Qualquer vacilo...

CANDEIA — Caem do pau em mim.
Cobram muito de mim, exigem de-
masiadamente de mim, e me pressio-
nam de tal maneira que a barra é pe-
sada. Quilombo criou um problema pra
multa gente. A Quilombo nasceu aqui
em casa com meia dúzia de gatos pin-
gados, mas as pessoas subestimaram
uses capacidade de reunir.

Lena — Já tem apoio da Funarte?

CANDEIA — Não teve apoio de
Funarte nenhuma. A Quilombo será a
menina dos olhos da Funarte se esta se
dispuser a reconhecê-la. A Funarte só
vai se fixar realmente quando estiver
nos dando apoio, porque a Quilombo é
um movimento espontâneo, não é de
grupinhos nem tá preso a panlinhas. É
livre como um passarinho.

Roberto — Qual o padrão da gente
negra que tã dentro da Quilombo:
Aleijadinho, Paulo da Portela ou
Machado de Assis?

CANDEIA — São todos os grandes
homens que contribuíram em termos do
brasilidade para o afro-brasileiro. Vou
citar um nome: Zumbi. Esse homem
teve pra nós a mesma importância que
Caxias. Outro nome: Cruz e Souza. Tem
um cara aí que foi considerado gênio, a
maior capacidade intelectual, mas que
fez a maior burrice de todos os tempos
contra a História do Brasil.

Roberto — Ruy Barbosa?

CANDEIA — Foi! Mandou queimar
todos os documentos sobre a escravidão,
tirando condições de um sociólogo ou
antropólogo estudar o assunto! Fol um
crime contra o pais, contra a História,
contra a cultura brasileira!

Lena — Agora estamos diante de um
fato consumado com um Pesídente e
vários governadores indicados.

CANDEIA — Além dos biónicos.

Lena — Quais seriam os caminhos
indicados pra essa gente fazer alguma
coisa pelo problema do marginal bra-
sileiro?

CANDEIA — Ô Lena, isso é muito
profundo, são tantos os problemas que a
gente sente, mas acredita que uma
melhor distribuição de renda seria o
ideal. E se o governo tiver ousadia de
contar com homens de cor na sua
assessoria será realmente popular
porque estes representam as camadas
marginalizadas da população, também
ajudando pra que nossos filhos não
continuem sentindo vergonha de ser
brasileiros. Entretanto, não é só do
negro de pele que me refiro, porque na
favela existem índios, mulatos, brancos.
Quando eu disser ''negro'' subentendam
que poderá ser substituído por “pessoas
menos favorecidas dentro do processo
econômico”, que realmente são a
maioria dentro do sistema.

Roberto — Ou fora do sistema.

CANDEIA — Sim, marginalizados.
Achamos que só podemos somar se essa
maioria tiver uma participação atuante
em todas as camadas do poder.

Lena — Você levou um pau da crítica
quando foi contratado pela Warner. O
que é que você tá fazendo lá?

CANDEIA — Meu trabalho na Warner
será reconhecido dentro de pouco tempo
porque, afinal de contas, tô quebrando o
tabu, abrindo sendas. A Warner é uma
multinacional tanto quanto a RCA, a
CBS, a Odeon, Philips, outras aí. Essas
pelo menos pagam. Tem uma porção de
gravadoras-fantasmas que pegam o
artista, gravam, e não pagam pomba
nenhuma. Tem cara gravando aí que tá
numa ruim.

Roberto — Quais são os ideólogos da
cultura negra que você curtiu?

CANDEIA — Edson Carneiro, irmão
do nosso Nelson Carneiro. Ele é por-
telense, foi quem me orientou pra me
inscrever na Portela. Alípio Goulart,
Eduardo Oliveira, Clóvis Moura. O resto
sai de mim mesmo, da minha vivência,
do meu sofrimento e minhas observa
ções.

Roberto — Há algum desses conasa-
grados que você deplora?

CANDEIA - Você é por demais der-
rubador. Eu não diria deplorar mas
que me impressionam menos que os
outros. Há um nome muito considerado
nas raias o jogadas no entanto não
aceito o que ele diz: Gilberto Freyre. Pô,
mas não sou muito ligado a ler livros pra
tirar fundamentos, prefiro vivor aquilo.
Não sou um pesquisador. Sou fã de
pesquisa, mas não sou pesquisador.

CANDEIA — O negócio mais marcan-
te é falar da necessidade da partici-
pação do negro em todo os altos graus do
poder para que nossos filhos não sintam
vergonha de serem brasileiros. Ou o
governo abre as portas para que a po-
pulação negra tenha acesso às suas
atividades ou então o negro vai ficar na
obrigação de sentir-se envergonhado de
ser brasileiro. Não tem mais jeito, é
calça de veludo ou botar de fora. A
população carcerária na sua maioria é
negra enquanto os maiores criminosos
desse país, que roubam do povo e da
economia popular, continuam firmes aí.

PASQUIM



 

Thursday, August 6, 2020

Noel Rosa: VENHO VOTAR EM "CARTOLA"



Noel Rosa: VENHO VOTAR EM "CARTOLA"
A Nação
21 de Abril 1935


Noel Rosa, é o homem que
conseguiu com sus admiravel ins-
piração, fazer o samba evoluir.
Marcou com seu ingresso em
nossa musica popular, uma época.
Suas composições espelham psy-
chlogias. Por isto o voto de Noel,
cresce de importancia.
 — “Cartola”, disse-nos Noel,
merece uma campanha em torno
do seu nome. Dos compositores es-
pontaneos ninguem merece mais
do que ele. Tem dado ao publico
não pequeno numero de verdadei-
as obras primas. Quem não co-
nhece “Divina Dama” e “Fita
meus olhos?” Não me poderia
passar desapercebido o nome de
“Cartola”, num concurso entre os
melhores sambistas, À sua Esco-
la de Samba, à quem empresta to-
da a colaboração, está no dever
de ampara-lo. Tantas vezes tem
concorrido para o renome alcan-
çado por sua escola, que não se
esplica, esta a desemparar justa-
mente quando chegou a sua vez
de aparecer. Dou por isto a “Car-
tola o meu voto sincero.

"CARTOLA" NAO CONCORRERA


"CARTOLA" NAO CONCORRERA
A Nação
1 de maio 1935

“Cartola” não concorrerá de verdade, ao nosso concurso para a
escolha do maior sambista dos nossos morros. Quem nos veio dar
essa noticia que muito nos entristece foi o proprio Cartola, que esteve
ante-hontem em nossa redacão, em companhia do vice-diretor da
Escola de Mangueira.

— Eu não concorrerei de maneira alguma ao concurso que vocés
estão realizando. Não estou de acordo com as bases do mesmo. Isso
porque poderá vencer qualquer um que não seja sambista que nunca
tenha composto um samba de verdade. Eu não quero com isto ofender
aos demais que concorrem, mas penso que estou acertado na minha de-
cisão. Se A NAÇÃO realiza-se um concurso onde o publico votasse por
sua vontade, pelo valor que  esse o compositor eu seria um concor-
rente. Mas nesse concurso não o serei. Sinto muito mais chorar
não posso...

Foi assim com uma declaração laconica, que “Cartola", o festejado
sambista dos nossos morros retira de uma vez por todas o seu nome
quando tanta gente o queria ver nesse grandioso concurso, que ele
erradamente julga falho. Esqueceu-se, “Cartola", que seu circulo de
simpatias era grande e que suas possibilidades de vencer eram iguais.
É um falta que lastimamos.

A MANGUEIRA DE LUTO
Faleceu ante-entem uma das maiores expressões do samba. Sa-
turnino Gonçalves o baluarde dos baluartes, encerrou sua
trajetoria. Até o ultimo instante, o samba foi seu maior cuidado.
Perde a Estação Primeira e a musica nacional, um dos seus maiores
cultores.

A "Cuica", a Morena, e o Samba



A "Cuica", a Morena, e o Samba
A Nação
11 de janeiro 1935

A cuica é bem a companheira
inseparavel do samba. Muita gen-
te ignora como nasceu a cuica.
João “Mina”, um preto velho, foi
seu inventor. Falou-nos sem vai-
dade, com a modestia desta gente
simples, que canta na alegría
na dôr.

Em 1905, no bairro do Agrião.
nos fundos de uma cocheira, foi
feita por “Mina” a primeira cuica
A experiencia deu-se com a caixa,
feita de uma lata de manteiga.

O nome primitivo foi cuita, em
homenagem a seus avós africa-
nos. Depois... talvez para faci-
lidade de pronuncia, passou a
chamar-se cuica.

O inventor, modesto como qua-
si todos, permanece incognito,
com o seu instrumento simples,
quasi analphabeto.

Mas, com a gloria de ter feito
parceria com o samba... Elle
tem uma cuica, toda de couro
com uma  resonancia digna de
nota.

Venceu, penetrou nos salões e
teve sua consagração. Agora, to-
dos ficam conhecendo o seu in-
ventor.

A "CUICA", O INSTRUMENTO ANALPHABETO



A "CUICA", O INSTRUMENTO ANALPHABETO
A NAÇÃO
12 de janeiro 1935

Adaptações interessantes de Paulo Campos,
um sambista de "escola" - De onde nasceu a
melodia das ruas - Contribuição a historia


Hountem publicamos um traba-
lho que é uma contribuição va-
liosa para os historiadores das
causas novas.

Tudo quanto se relaciona com
a “festa da alegria”, que em sua
parte puramente carnavalesca,
quer na contribuição que possa-
mos dar para que fique gravado
ainda mais, que carnaval é coisa
mais seria do que muita gente
pensa.

Foi João “Mina”, o Inventor
deste instrumento rude, a “cui-
ca”, que galgando sem reclame,
por seu valor proprio, dos “ter-
reiros" da “batucada”, onde
“raiou” o samba, sendo naquelle
tempo, estas reuniões clandesti-
nas, conseguiu chegar aos sa-
lões.

Vamos quasi fazer uma histo-
ja retrospectiva da origem do
nosso samba.

Assumpto por demais descu-
tido e contestado, nos enclinamos
a crér, ter sido o samba, uma
directriz variante das musicas
africanas, que nos legaram os
tempos coloniaes.

Foi o “Caxambu” e o “Ton-
go”, que no norte do Brasil por
transições e nova forma chegou
a actualidade com o nome de
"Cocô” e que no Rio, foi tam-
bem se transformando, sendo que
a forma mais aproximada, é o
antigo “Partido Alto”, de curto
côro, e versos de improviso, tira-
dos em descante; no centro uma
roda, para a qual eram chamados
os “mestres” da “Capoeira”, luta
muito typica, muito nossa, aliás
meio de defeza dos mais perfei-
tos, é que sem razão preterimos.
por outras importadas e menos
efficientes.

Para que se recorde, damos
dois córos, sendo que o segundo
é do “velho” Antonico, que dirige
hoje a Escola de Samba da Man-
gueira.

“Era meia noite, quando o va-
lente chego"

A cabrocha da bahia
No fazer carinho é má
Só para perguntar
O que tem Yá Yá"

Bis — Miná é có, ô, é cô minã é
(o que tem Yá, Yá)

O SAMBA CIVILIZA-SE

Transformando-se subindo os
morros, civilizando-se aos pou-
cos, indo do Estacio ao Morro de
S. Carlos, adaptando-se mais, fo-
ram introduzidos instrumentos
novos, que collocaram o tambor
em de inferioridade. Foram os
“tamborim”, a “Cuica”, os “pan-
deiros”, o “omelê”, os “ganzas”,
o cavaquinho, o violão, a clari-
neta, e por ultimo a flauta.

Cada dia se transformando,
passando por novas modifica-
ções, é justo que se destaque o
nome de Rubens Barcellos, ir.
mão do Alcebiadas (Bide), au-
tor de “Agora é cinza” e outras
composições victoriosas, já fale-
cido, foi um dos modificadores
da melodia popular.

Este foi sem favor, um dos in-
troductores do samba canção.

Depois novos compositores,
mais methodo, mais capricho,
mais melodia, mais esméro, e o
samba penetrou nos salões, en-
cantou muitos sarãos “chica”
venceu.

Surgiram novos astros, é hoje.
podemos dizer, uma victoria da
brasilidade.


Não se explicava que tendo nos
uma musica bem nossa, bem a
nosso feitio, fizessemos reclame
das importadas, muitas vezes
com peores lettras, e bem razão
nos assiste, quando  affirmamos
que melodia selvagens nos são
impingidas como obras primas.

Nossa sociedade comprebendeu
em tempo, a “ala moça” soube
ver-lhe os encantos.

Quem não se lembra das com-
posições que forçaram as barrei-
ras dos preconceitos”?

Vem, vem,
que cu dou tudo a você,
menos vaidade.
tenho vontade
mas é que não pode ser

Chegou o Noel, bem um crea-
dor de estylo, um verdadeiro.
aperfeiçoador da nossa musica.
Quem não se lembra do “Com
que roupa”?

Com que roupa? Eu vou
Ao samba que você me con-
vidou


O SAMBA NA SOCIEDADE

Depois de fazer-se impôr, ja
se dansa samba de casaca.

Ja se ouvem nos banquetes de
gala, as nossas coisas.

Venceu por seu valor proprio.

Já o vimos até no Municipal,
fazendo “frente' nos bailes que
a Prefeitura organizou, com clas-
sicos que sempre nos fazem re-
cordar nas temporadas officiaes.

Agora apparece-nos um novo
aperfeiçoador da “cuica”, o ins-
trumento que casou com o samba

A “CUICA” O INSTRUMENTO
ANALPHABETO QUE SE APERFEIÇOA


Um authentico cultor do sam-
ba espontaneo, pensou e realizou
um grande melhoramento na
“cuica”.

Pela photographia acima, po-
de-se bem vêr as duas “chaves”
que conseguiu collocar na caixa
de som.

Com “tarracha” com os pan-
deiros, estas em numero de 5,
consegue já fazer o instrumento
vibrar numa tonalidade certa, na
medida dos accordes que a mu-
sica tiver.

E' mais uma contribuição nos-
sa para augmentar as que já te-
mos dado.

Assim nos falou Paulo Campos
este novo aperfeiçoador:

— “Por ser um instrumento
rude, a que tinha grande ami-
zade, por observações nos "saxe”,
cheguei a conclusão que ada-
ptando á caixa, uma serie de
“chaves”, faria chegar à tonali-
dade que quizesse. Assim proce-
di, colhendo os melhores resulta-
dos. As “chaves”, são como as
do outro instrumento, forradas
de lã, para melhor vedarem o
som.

Coisas bem interessantes se
podem dizer a respeito da cui-
ca", e faço questão de enume-
ral-as.

A haste central pode ser de
flexa, pouco aconselhavel por sua
pouca resistencia, de “guachim-
ba", cuja casca é empregada na
cordoalha, e de taquara como
mais se usa.

A “cuica” deve ser tocada com
um tecido de seda, por esta fa-
zenda a que mais faz sobresair
o som.

Deve ser “encourada” com
pelle de carneiro, por ser a mais
resistente e mais fina, se pres.
tando melhor que qualquer ou-
tra”.

Deixamos com isto mais esta
collaboração espontanea, que se
utilizem os estudiosos do as-
sumpto.


CARTOLA: Uma vida a passo e compasso




CARTOLA: Uma vida a passo e compasso
Compositor da época em que a polícia
subia o morro para fechar roda de samba,
ele se considera "um operário do carnaval".
Manchete 3 dezembro 1977
Depoimento a Ronaldo Bôscoli e Fotos Manchete


"Se a gente não ficar falando
muito das minhas com-
posições, eu topo. Num
leito de hospital, o melhor é a
gente falar da vida. Tenho uma
vida pela frente. Tenho família
esperando por mim. Logo eu,
que nunca fui pai. Cá pra nós,
com um certo desgosto. Meus
dois filhos nasceram, mortos. Aí,
o jeito é subtrair o azar e somar a
sorte. A sorte que tive quando
encontrei Zica. E olha que muita
água passou debaixo da ponte...
Antigamente o que a gente não
ganhava em dinheiro, ganhava
em mulher. Nesse ponto, eu me
considero um milionário...”

Aí Cartola — aliás, Angenor de
Oliveira, 11 de outubro de 1908
— dá uma gostosa gargalhada.
Ele está internado no INPS
quando gravo seu depoimento.
Esta palavra, que a princípio o
assustou, passa a ser meio esno-
bada.

“Depoimento? O que é isso,
meu filho, você acha que eu vou
morrer? Nada disso. Eu criei
cinco pessoas, inclusive um casal
de netos da Zica e nosso filho,
Ronaldo. Como se fosse nosso,
mas dado de papel passado. Seu
xará desfila ma Mangueira e é
chegado a um futebol. O futebol
dele, eu prestigio. Vê-lo desfilar
na Mangueira é muito luxo pra
nós. Sabe quanto é que está cus-
tando uma entrada? Quem sabe,
nós damos sorte e vamos ver O
menino “pela televisão”...
Desde que o carnaval virou in-
dústria eu parei com ele. Não
sou industrial e não tenho mais
idade para ser operário...”

"Pra mim, a doença
é um habeas-corpus”


“Fui operário do carnaval até
ano passado quando — à força
— desfilei na ala dos composito-
res. Este ano eles estão armando
outra pra mim. Mas isto aqui —
Cartola mostra o hospital onde
diz que irá operar atiróide — é o
próprio habeas-corpus... Tou
velho, meu filho. O negócio é
cansativo e, de certa forma, men-
tiroso. Tem muita carne de peixe
metida no pirão...”

“Comecei nas Laranjeiras. Mas
a barra pesou. E nós subimos o
morro. Eu pra sempre. Vou mor-
rer na Mangueira. Onde pisei
com 11 anos. Quatro anos de-
pois, eu desci aquele barranco
feito um doido. Minha mãe ia ter
outro filho. Chegamos tarde. Eu
e o parteiro. Com a morte da
velha, o pessoal resolveu descer.

Tive um desentendimento com
meu velho, Sebastião Joaquim
de Oliveira, que, aliás, também
me passou uma rasteira. Ele es-
tava bem, apesar dos 93 anos.
Morava só. Aguentou a barra so-
zinho. Minha irmã chamou.
Internei-o e — por via das dúvi-
das deixei dinheiro para o en-
terro — não fazia fé que ele apa-
gasse. Nem os médicos. Subiu
quando eu estava em Curitiba
fazendo show. Voltei, enterrei-o
e fui fazer um repeteco do show
que, aliás, agradou muito. Eu
acho que o público que com-
prou entradas antecipadas não
tem nada com meu drama. Faço
um samba e o assunto morre no
peito... Mas, naquele tempo, fi-
quei na bronca com o homem. E
resolvi ficar no morro.

Escola de samba, quadra?
Isso é papo de hoje. Antigamente,
a gente baixava numa roda de samba.
Que eu só passei a frequentar, de
cara limpa, com 16 anos. A barra
era pesada, porque a polícia
tinha que apresentar serviço. E
acabava com toda roda. No
morro, ela não pintava. Debaixo
pra cima já é brabo — né meu
filho? — e inda por cima subir à
toa... Lá debaixo, zunia o garo-
tinho pelas embrenhas dos ma-
tos: “Olha a polícia!” Eles, além
de correr um risco, geralmente
marcavam a maior bobeira. Por
isso é que eu sempre frequentei
os morros. Jogada de Estácio era
para malandro metido a coisa e
tal. Nos morros a entrada era fá-
cil mas a saída muito mais.

Nosso crime? Samba, meu nego,
sambinha, manso e gostoso... Só
em 1928/29 foi oficializada a Esta-
ção Primeira de Mangueira. Faz
as contas e veja quanto tempo a
gente sartou de banda. Era en-
graçado... Na fundação da es-
cola, eu fui diretor de harmonia.
Mas sejamos honestos. O mi-
cróbio do samba me foi injetado
pelo velho. Eu era muito garoto
quando saía com toda a família
no rancho dos Arrepiados. E com
minha voz, que era boa, cheguei
a ala do Satanás, coisa de anti-
gamente, meu filho... Saíamos
eu, papai, que tocava cava-
quinho profissionalmente no
bando, minha mãe e meus ir-
mãos.”

“A primeira vez que vesti uma
fantasia. Sabe lá o que é isso?
Minha mãe caprichava mais co-
migo. Eu era o primeiro homem
da sua família. E, um dia, ouvi a
velha dizendo pra papai que
“não adiantava chiar, eu era O
seu filho querido”. Parece uma
bobagem, mas isso está marcado
no meu peito, até hoje... Minha
mãe está no céu. Ela morreu
numa quinta-feira santa. Dia em
que eu senti um troço aqui no
peito, mais pesado que eu. E que
eu não explicava pra ninguém..:
Uma estranha dor de corno.

Eu não nasci na Mangueira, mas
acho que participei de todos os
seus movimentos. Quando a
gente pensou em fundar a nossa
escola o falecido Nascimento —
que briga braba, meu Deus —
disse que ninguém iria acabar
com o bloco do Faria, que
aquele negócio de escola era
coisa de maricota e foi duro pra

dobrar o homem. Foi preciso o
Marcelino subir lá em cima e le-
var um papo, enquanto a gente,
ensaiando, esperava o resultado
aqui embaixo. Marcelino tam-
bém era cana dura. Mas parece
que o negócio foi resolvido no
papo mesmo. Aliás, sempre que
eu posso acendo uma vela para O
falecido Marcelino — essa histó-
ria, meu filho, tem falecido paca
—, meu mestre e a primeira pes-
soa pra quem eu meti a malan-
dragem.

Escuta Marcelino, o ne-
gócio é que eu estou parado na
mulher de um cara valente :
paca... “Valente aqui só eu, ga-
roto. Vai firme”. E eu fui. Só que
a mulher era a mulher do pró-
prio Marcelino. Eu tinha o quê?
18/19 anos. Aí subi o morro e me
empapucei... O Marcelino sacou
que naquele dia eu faltei à roda
de samba. E foi me catar na casa
dele...

O homem, com um pu-
nhal desse tamanho, não sabia
se furava a mulher ou se me fu-
rava. Eu desci, de calça na mão.
Até que ele pegou no meu can-
gote magro. Tudo que ele dizia,
bufando, de minha mãe, eu con-
cordava chorando. Ele preferiu
livrar minha cara, senão você es-
taria entrevistando o Cartola
numa sessão espírita.

Marcelino era ingênuo.
Contou o fato pra turma
que frequentava a barbearia.
“Ué, você não disse que ele
é seu aluno? Pois dê um diploma
pra ele. Tá quase professor”.
Marcelino mudou de mulher...

A Mangueira sempre foi minada
pela política. Tanto que durante
muitos anos, andei afastado.
Torcia pela minha escola, de
longe... Só voltei ano passado,
quando a ala do Bira venceu. E já
fui obrigado a desfilar. A Man-
gueira é como o Flamengo. Só tá
bem quando está nas cabecei-
ras... Tempo de Carlos Cachaça
e Candinho já vai longe. E dá
saudade. Hoje a Mangueira —
como diz o outro — é obrigada a
trunfo...”

— E as mulheres, Cartola? O
samba.


“Desde que eu tive um caso
com a mulher do Marcelino,
aprendi que mulher a gente
marca no cabo da espingarda.
Cada cinco, um risco em diago-
nal. E moita. Muita moita. Das
que eu posso falar, a falecida
Deolinda e a Zica. Minha força
de fé. Meu cavalo de inspiração,
o argumento do meu samba.

Antes? Fiz muito samba, mas pra
mim antes não vale nada...
Aprendi, com os mais velhos, a
não fazer meu nome com a mu-
lher dos outros. Do samba, a
gente fala. Deita e rola. Zé Com
Fome e Geraldo Pereira chega-
ram à Mangueira depois de mim.
Geraldo era valente, tá certo,
mas antes dele eu tenho que ci-
tar o Nascimento, o Marcelino —
desse eu não esqueço — e o Ca-
boclo.

Esses, quando chegavam,
a moçada mudava o tom da me-
lodia. Sempre pra mais fino. Po-
rém tudo gente boa. Você acre-
dita que eu nunca fui atacado ou
assaltado em Mangueira? Hoje
em dia, eles se dão ao luxo de
me acompanhar até a porta de
casa. “Seu Cartola, tem vaga-
bundo diferente nas bocas, é
melhor a gente: levar o senhor e
dona Zica...”

Antigamente, era outra coisa...
Eu — raramente —descia o
morro pra pintar no Estácio.
Lá encontrava gente legal
como o Ismael Silva, o Brancura,
o Baiaco, tudo gente fina. Eles
foram os primeiros a elogiar meu
samba primeiro, um negócio as-
sim, meio pé-quebrado, meio
sem graça, mas muito presti-
giado: o Chega de Demanda.

Os caras me animaram tanto que aí
eu saí fazendo uma porção...
Bem que o pessoal do Estácio me
chamava. Mas era rabo certo. A
polícia fazia o nome, prendendo
os frequentadores das rodas de
samba do asfalto. Subir lá em
cima. De cima pra baixo? Nunca.
Nunca eles pintaram. Tanto que
eu jamais encontrei a polícia. Só
vim apanhar dela quando parti-
cipava oficialmente da Man-
gueira.

Na Praça Onze. Apanhei
de criar bicho. Por quê? Quem
explica isso, meu filho? O pau
come, quem samba, samba,
quem não samba, dá o fora. Eu
não estava acostumado. Dancei.
À primeira e única vez... 1938.
Desde que a escola foi fundada e
seu presidente era o pai da
Nelma, Saturnino Gonçalves.
Com quem tive desavenças, mas
que, felizmente, morreu meu
amigo. Desavenças eu tive mui-
tas pela vida, mas parece que em
meu destino está escrito que
tudo acaba bem. Veja você, meu
filho, enquanto eu era o Ange-
nor, o garotão, sofri o diabo.
Depois de velho, sem menos es-
perar, amansei a vida.”

Do violão ele nunca se separou desde os tempos de
garoto, quando frequentava a turma da pesada de
Mangueira. De Zica, não se afasta: numa existência de
muito sofrimento e luta, ela foi “o seu lado da sorte”.


M INHA juventude passei
entre fome e desabrigo.
Depois dos meus quatro
anos de primário — que hoje
Valeriam como um ginásio —
curti a vida com água até a
cintura em escavações, ou
moendo carvão nos porões do
Cais do Porto. Antes, eu era mais
livre. Trabalhava em obra.
Libertei-me da gráfica porque
tudo era muito fechado e tinha
um negócio chamado serão. Na
obra eu podia, pendurado nos
andaimes baixos — na época —,
Paquerar as mulatas e as
negonas. 38 anos. Meningite.
Salvou-me a penicilina
estrangeira. Que pintava muito
por aqui, logo depois da guerra.
Mas eu fiquei maculado.
Puxando da perna esquerda.
Muleta. Muleta no duro. Aí,
ninguém me queria na obra.

Vigia? Quem toma conta de
Noite é sapo. Desesperado, sem
muito o que fazer, rodei
redondo uma noite entre samba
e birita. Dia seguinte, comprei
um jornal e descobri um
emprego que me caía sob
medida. Garagista no Leblon. O
anúncio não avisava que a gente
tinha que lavar onze carros. Mas,
quem está nela, o jeito é não
fazer onda. Aí, a marola entra
boca adentro... A noite era fria,
o corpo molhado, só mesmo
uma quentinha.

Aí fui descoberto pelo Sérgio Porto.
Cartola, você está nesta? O
Sérgio não sabia que a esta de
que ele falava era mais ou menos
um prêmio... E me levou para a
Mayrink Veiga. Enquanto ele
ficou, eu me escorei. Cheguei a
fazer músicas, a trabalhar, mas,
infelizmente, o samba não estava
na moda. E eu voltei pra
Mangueira. Fui ser vigia da
Associação das Escolas de
Samba. A verdade é que o
ambiente favorecia. E assim
nasceu Zicartola. O Nelson
Cavaquinho, o Elton Medeiros, a
moçada se agrupava por ali.

Um samba, uma sopinha quente feita
Pela Zica, e o pagode redondo.
Nessa ocasião um capitalista
muito esperto e frequentador da
roda sacou que, se nós
montássemos um restaurante
com uma comidinha legal, a
coisa poderia pegar. Foi quando
o Angenor virou Cartola. Aliás,
Zicartola. Os homens faturaram
o suficiente e depois entregaram
a bomba para o casal. Ora, eu
toco violão, a Zica só entende de
cozinha. Paguei caro pra saber o
que era boca livre, cheques sem
fundo e fundos sem cheques.
Primeiro, almoço e jantar.
Depois, um violão. Aí, virou
epidemia. E como toda epidemia
que se preza, é necessário um
médico. E a gente, que não
entende de medicina, quase
faliu. Mas deixa pra lá. Os
homens que investiram tiraram o
deles? Otimo. Eu virei o Cartola,
manjado na Zona Sul, amigo da
Nara Leão e coisa e tal, sacou?
Fiz minha política e ela acabou
resultando num lugar na Sunab
(lembra?), depois o Dr. Paulo
Egídio — atual governador de
São Paulo — me arranjou um
emprego do qual eu vivo até
hoje: sou funcionário do
Ministério da Indústria e
Comércio. E até hoje sou muito
respeitado, graças a Deus.”

Entre tristezas e
alegrias, o saldo

“Minha vida é como um filme de
mocinho. Acabei vencendo
quase no final. Tive meningite,
fui manco de uma perna, uso
óculos escuros porque a vista
esquerda não suporta o dia — a
boémia, como diz a Zica —, tive
um problema no nariz que ficou
escuro porque eu não dei luz
aos médicos que me
recomendaram tomar banhos de
raios X, ultravioleta,
infravermelho, sei lá... meu
corpo pagou muito. Mas,
felizmente, sou um cidadão
respeitado, querido pelos jovens
— tive contato com eles nestas
caravanas — gente com quem,
aliás, fui injusto. Os jovens não
se iludem. Sabem de tudo. E
sabem separar a mentira da
verdade. Pura e milagrosa
intuição. Nos jovens estão
nossos futuros sambistas. Que
caprichem cada vez mais e que
tenham a metade da paciência
que eu tive. Eu esperei 40 anos,
meu filho... E triste, mas as
escolas de samba tendem a
acabar. Virar indústria mesmo.
Só os jovens bem intencionados
poderão salvar o samba. A fatura
do samba-enredo é imediata e
mentirosa. Mas virou -um hábito.
Cadê o samba mesmo?”

— Tem muito branco no
samba. Esse branco, meu filho,
você sabe que é uma chamada
concessão poética, tá certo?
(Cartola ri muito)... Essa história
é muito longa. Começa nas pró-
prias gravadoras, que fingem
prestigiar o samba e são seus
mais agudos punhais. Vamos fa-
lar de alegrias? Aí eu falo que a
distribuição do direito autoral
está mais justa, já recebo direitos
da Itália e da França. Longe paca,
né, meu filho? Falo da Zica. Pra
quem fiz um samba jóia. Nós
Dois.
Posso fazer um comercial?
Pois esta música está no LP que
gravei. Tem mais duas músicas
que considero entre as melhores
que compus até hoje: Autono-
mia
e Verde que te Quero Rosa.
Comprem o disco que vocês
ajudam o Cartola. A última can-
ção é o título do LP.

— Cartola, e os marginais do
samba?


— Meu filho, eu sinceramente
não gosto que falem assim dos
sambistas. Um artista não pode
ser um marginal. Vivo na Man-
gueira muito bem, porque de-
do-duro se machuca. Manero
daqui e dali. Jamais apontei
qualquer pessoa. Falavam O
diabo de Natal da Portela. Tive-
mos uma briga no túnel João Ri-
cardo, porque ele destratou a
Zica. Coisa de cabeça quente.
Natal era uma santa pessoa. Di-
zem que eu não componho mais
com o Nelson Cavaquinho por-
que ele me estarrou um samba. E
verdade, Nelson vendeu um
samba nosso e embolsou a gra-
na. Mas ele sabe que nós conti-
nuamos amigos. Se ele pouco
vem à Mangueira, aí o problema
passa a ser dele. Estou muito
velho pra descer... Mas o Nelson
é boa gente. Gosto dele. Since-
ramente. Gosto dele.

— Cite alguns sambistas quen-
tes.


— Paulinho da Viola, com
quem espero compor alguma
coisa. O Silas de Oliveira, Paulo
da Portela, o Calça Larga, Mano
Décio, João Nogueira, Antenor
Gargalhada, e, naturalmente, o
Nelson Cavaquinho. Claro que
estou esquecendo uma pá de
gente. Eu acho meio maldade
com um velho perguntar por
números ou valores. Esqueci
muita gente, tenho certeza.

Se eu me incluo entre eles? Sei
lá, meu filho. Seria muito in-
justo. O samba entra muito fácil
no meu peito. Vai inchando, in-
chando e se eu não boto ele pra
fora, dia seguinte tem flor no
quintal da Zica. Os mais adora-
dos? Os que eu citei e ainda
lembro de alguns que podem
passar por um arrocho mais sé-
rio. Seja de quem for. Cito o Di-
vina Dama, Sim, O Mundo E um
Moinho, As Rosas Não Falam,
Acontece.
Assim, de estalo, são
os meus favoritos. Devo ter co-
metido injustiças. Mas aí não
tem importância porque é co-
migo mesmo.

Músicas para mulheres, fiz
muitas. Mas por um dever de ca-
valheirismo só devo citar a que
escrevi para Zica: Nós Dois. As
injustiças são muitas, mas o que
é que a gente pode fazer. Acho
que as músicas de Nelson Sar-
gento e Carlos Cachaça deveriam
ser muito mais prestigiadas. O
Carlos nasceu na Mangueira.
Agúentou o diabo e sempre se-
gurou firme a barra pesada. Me-
recia uma oportunidade. Ele é
um poeta quente. Quentissimo.

— Você acha que já pode
morrer em paz?

— Em paz, eu não vou morrer
nunca. Eu acho a vida um negó-
cio formidável. Quem gosta de
homenagem póstuma é estátua.
Eu quero continuar vivo e bri-
gando pela nossa música. Since-
ramente, não acreditava que eu
ainda vivesse esse tempo de
grande justiça que o povo brasi-
leiro — apesar dos pesares — faz
à música brasileira. Eu não sou
radical. Acho que tudo que é
brasileiro de verdade é bom.
Tom Jobim? Excelente...

Você me vê aqui, numa en-
fermaria do INPS, e haverá de
perguntar. “Cadê os amigos?
Você poderia estar num hospital
particular.” Nada disso. Eu não
incomodo os amigos por pouca
coisa e, além do mais, aqui sou
reconhecido. O pessoal me trata
com muito carinho. Eu acho que
ainda não me acostumei ao luxo.
Qualquer coisa que me destaque
me deixa meio sem jeito. Você
quer um exemplo? A Boate Car-
tola, lá em S. Paulo. Um grupo
de amigos veio de lá pedir con-
sentimento para usar o meu no-
me. Nome? Digamos, apelido.
Pois bem. Aceitei. Topei inaugu-
rar O local, fui pra São Paulo, um
sucesso danado. Na estréia da
boate, eu perdi a voz. Muita
emoção.

— Hoje em dia, eu me cuido
demais. Não frequento a minha
escola. Sou muito ligado à nova
diretoria, mas prefiro o aplauso
distante. Estou evitando emo-
ções maiores. Ainda tenho netos
pra formar. Tenho música pra fa-
zer. Se começo a sentir O cora-
ção formigar, já vou sartando de
banda.
Vivi uma vida que — pa-
lavras de Ciro Monteiro — não
resta a menor dúvida. Estou num
saldo adorável. Para muitos,
vencer na velhice significa muito
pouco. Para mim, é a própria li-
ção da vida. Um prêmio ao vivo.
A consciência de que o tudo so-
frido não foi em vão. Já fui um
sujeito muito revoltado. Nos
porões do Cais do Porto, nas
profundezas das escavações. Aí,
eu tentava um samba. Muitos
deram certo, outros ficaram, ou-
tros morreram no assovio. Eu
penso assim. O que tem de ficar,
fica mesmo. O que sobra, morre
num assovio.

Meu filho, agora deixa eu des-
cansar. Estou limpando o esque-
leto para sofrer uma intervenção,
que os homens dizem ser muito
simples. Outro dia li num jornal
que meu estado era muito deli-
cado. Estado delicado, no meu
tempo, meu filho, era gravidez...




Wednesday, August 5, 2020

UH Entrevista: Dona Neuma

















































































UH Entrevista: Dona Neuma
Última Hora
11 de fevereiro 1983

A casa todos sabem onde fica: logo depois do Buraco Quente. Afinal, dona Neuma tem fama que ultrapassa os limites do Morro de Mangueira, sede da famosa escola. Foi em seu ambiente que ela falou com Haroldo Zager, Eduardo Lacombe, Mauro Dias, Salete Lisboa e Francisco Duarte. Falou com saudades dos primeiros tempos da Verde e Rosa, da qual seu pai foi o primeiro presidente. E, com muita mágoa, reclamou do isolamento a que é submetida pela atual diretoria. Logo ela, a Primeira Dama do Samba, uma das muitas musas de incontáveis musicas que ressaltam o samba da Estação Primeira. E mostrou-se temerosa com o futuro daquele bloco fundado por Cartola.


D. NEUMA - Ninguém gosta do
“verão... Eu adoro! A gente anda nua,
fica à vontade, bebe água, bebe cerve-
ja, dá caganeira, ninguém liga... (ri-
sos) Não que às vezes a gente tem
dor de barriga, fica todo mundo “é
disenteria!”, “à senhora tá bebendo
água demais!” Mentira, é cerveja de-
mais, que no verão a gente não esco- .
lhe nem o rótulo, quer é o líquido
gelado. Ela desce, desliza...

MD - A senhora tá com quantos
anos?


D. “NEUMA — 60. Nasci em 8 de
maio de 22, em Madureira.

HZ - Como foi que Madureira per-
deu a senhora pra Mangueira?


D. NEUMA - Papai e mamãe eram
do Estácio, moravam na Frei Caneca,
numas casas cabeça de porco. Era
bom morar assim: vizinho morava
dentro de casa um do outro. Minha
avó jogava no bicho, então era muito
conhecia no bairro.

MD - Quanto irmãos vocês eram?

D. NEUMA - Éramos quatro meni-
nas, morreu uma. Sou a mais velha.
Fui a primeira filha, a primeira neta, a
primeira sobrinha, .a primeira afilha-
da, sempre fui a primeira.

EL - Hoje é a Primeira Dama da
Mangueira.


D. NEUMA - Nem senti isso, já
tava acostumada. Mas depois minha
mãe mudou pra Rua Dona Minervina.
E quando meus pais casaram foram
morar em Madureira. Um ano depois,
ó eu aí, cheguei, gritando saravá!

FD - Só um detalhe: a Rua Miner-
vina ficava na boca da zona, né?


D. NEUMA - Ih! Dona Minervina
esquina de Pereira Franco! Tinha um
cinema ali que minha mãe frequlenta-
va...
FD - Cine Centenário, ao lado da
fábrica de cerveja...


D. NEUMA - Era uma zona negra.
Minha mãe foi criada ali no meio
daquelas mulheres, que tomavam
conta dela como se fosse filha. Minha
mãe não tinha pai nem mãe, mas era
muito bem cúidada, ia ao cinema,
tinha roupinhas bonitinhas. Morava
numa casa de família. Foi minha mãe
que me ensinou a se dar bem com
todo mundo, sem saber quem é quem,
de onde vem e vai pra onde, que ter
amigos é a coisa mais importante da
vida. Amigo pra mim vale mais que
milhões de cruzeiros no bolso. A coisa
mais gostosa do mundo, gente, é ter
amigos!

HZ - Mas antes disso, vamos passar
por Madureira.


D. NEUMA - Madureira, morei
pouco. Nasci na Rua João Vicente.
Onze meses depois, já morava em
Piedade, do lado da Avenida Suburba-
na. Depois fomos morar em Terra
Nova, o reduto de sambistas naquela
época. Agora aquilo chama Pilares.
Minha primeira escola foi a Mara-
nhão. Ali aprendi as primeiras letras.
Era uma escola simples, a gente ia de
tamanco, nossa pasta era uma caixi-
nha de biscoito Aymoré, com cader-
no, lápis e uma merenda: pão com
manteiga. A vida já era ruim pra
gente. Papai trabalhava no Departa-
mento de Aparelhamentos Escolares.

MD - Qual o nome completo do seu
pai? E da sua mãe?


D. NEUMA - Saturnino Gonçalves.
Forestalina dos Santos Gonçalves.

SL - Como você veio parar na
Mangueira?


D. NEUMA - Por causa de samba,
né. Papai, mesmo morando no Está-
cio, já frequentava a Mangueira. Pa-
pai levava mais tempo no morro do
que com a gente em casa. Quase não
víamos ele.

FD - Tinha uma segunda família na
Mangueira?


D. NEUMA - Não, papai não tinha
mulher fixa, assim pra viver. Tinha
muito respeito à minha mãe, mas
dava suas castigadazinhas. Não esco-
lhia cara. Me lembro que ele tinha
uma mulher no morro, que bebia
cachaça, tinha a boca toda arrebenta-
da de quando o fígado dá pra estou-
rar. Papai beijava aquêla mulher...
(faz cara de nojo e depois ri bastante)
Quando ele chegava em casa, que a
gente tomava a bênção, ele vinha
beijar a gente não deixava.

HZ - Sua mãe sabia dessas escapu-
lidas?

D. NEUMA - Mamãe era meio va-
lente, sabe. Quando desconfiava, não
brigava com ele, mas ficava falando
"eu mató uma”, e ele tinha medo,
sábia que ela lidava bem com a ma-
chadinha, foi criada em Macaé, negó-
leio de rachar lenha. Ela pegava aque-
la machadinha afiadinha: “arrebento
uma nega dessas! Papai era um ho-
do muito calmo, e ficava com me-
do.

HZ - Sua mãe chegou a dar corrida
em alguém?


D. NEUMA - Muito! Deu até numa
chamada Sinhá Velha, que não era
fácil. E o negócio nem era com ela,
era com uma tal de Ursulina, mas
Sinhá Velha é que levou a culpa.

HZ - Você lembra da Revolução de
30?

D. NEUMA - A Revolução de 30
marcou muito a nossa família. Sem-
Apre vivemos tipo comunidade, e como
nessa revolução morreram muitos ra-
pazes vizinhos, minha mãe ficou cho-
cada, querendo sair dali. Dizia: “cada
vez que chego no portão vejo um
desses meninos mortos passar.” Mu-
damos pra Rua Lorena, num barraco
mixuruca mesmo, de zinco. Um dia
deu um vento e o telhado foi lá pra
casa do cacete, aí mamãe quis sair de
lá também. Tava acostumada com a
casa bonita que a gente morava, né.
Viemos morar na Rua Marechal
Aguiar, em São Cristóvão. Já era
altura de 1931. Lá, fiquei muito doen-
te, mamãe atribuiu à friagem da casa,
e mudamos pro Pedregulho. Lá, foi
papai quem ficou muito doente, e
aconteceu a vinda pra Mangueira.

MD - Quando foi isso?

D. NEUMA - 32 pra princípio de 33.
Papai ficou tuberculoso, não tinha
tratamento na época, tomou muito
suco de erva, mas não adiantou nada.
Era novo, tinha 34 pra 35 anos, e nós
perdemos tudo, mas ficamos tranqui-
los, com sorrisos até aqui.



























SL - Quando seu pai fundou a
Mangueira, vocês já moravam aqui
(na Mangueira)?


D. NEUMA - Não, a gente morava
em Terra Nova. Isso foi em 28 de abril
de 1928.

SL — Que memória, heim!

D. NEUMA - Claro, era aniversário
da minha irmã. A gente tava esperan-
do com a mesa posta, pra cantar os
parabéns, e nada de papai chegar.
Ficamos tristes, mas quando ele che-
gou de manhã cedo, muito bêbado,
falou assim:-“não vim mas trouxe um
presente." Mamãe, que sabia que ele
tava sempre duro, falou: “que presen-
te é esse?” “Eu trouxe pra vocês a
Escola de Samba Estação Primeira,
um bloco que nós fundamos, e onde
vocês vão participar”.

EL - Quem escolheu esse nome?

D. NEUMA - Cartola. Ele viu que a
Mangueira era a primeira estação
depois da Central do Brasil. Papai foi
logo escolhido o primeiro presidente,
por ser o mais calmo e pacato.

HZ - Imagine os outros! (risos)

D. NEUMA - Marcelino, por exem-
plo, dava rasteira, rabo de arraia... Foi
capataz lá em Santa Cruz. Olha, sei
que a Escola foi fundada na casa da
Joana Velha com seu Euclides, pai de
João Cocada, lá em cima, no Buraco
Quente. Tavam lá: meu pai, Cartola,
Marcelino, seu Euclides... Carlos Ca-
chaça não estava na hora. Zé Ispineli
tava lá. Tinha outros dois que não me
lembro o nome. Só papai é que era de
fora.

FD - Ispineli não tinha terreiro no
Engenho Novo?


D. NEUMA - Mas tinha uma nega
na Mangueira. Ispineli era um ho-
mem bacana, sabia o dia que ia mor-
rer. Fez um samba e veio pra Man-
gueira, com o grupo de santo dele
todo, acordando o morro. Saltou em
Triagem, veio, e quando chegou na
ponte cantou: “bem que eu quero
esperar / mas existe um porém / sinto
minha memória cansada / Essa triste
melodia / serve de um último adeus /
adeus escola de samba / adeus, Man-
gueira, adeus. // Adeus escola de
samba, adeus / eu vou partir choran-
do / relembrando os versos meus /
que mais cedo ou mais tarde / é triste
e doloroso recordar // A orgia vai se
acabar / adeus, Mangueira...” Lindo,
todo mundo cantando isso, de madru-
gada...

HZ - Ele tinha noção do que la
acontecer?


D. NEUMA - Sabia que ia morrer
naqueles dias, como de fato aconte-
ceu.

HZ - Qual foi a primeira agitação
da Escola de Samba Estação Primeira?


D. NEUMA - No morro tinha muita
macumba, um monte de terreiros.
Cada terreiro vestia sua roupa de
santo e saia no carnaval. O bloco
carnavalesco fundiu todos esses blo-
cos, com as cores verde e rosa, dadas
por Cartola, para obrigar elas a fazer
uma fantasia própria, que roupa de
santo jamais ia ter verde nem rosa. O
padrão das baianas era saia rosa, O
pano da costa, camisinha e pano da
cabeça verde. Quem quisesse, botava
uma rendinha. O verde tinha que ser
bandeira e o rosa não era choque,
como é apora.

















FD - Como a hortênsia, que tem
uma combinação perfeita de verde e
rosa.
HZ - Esse desfile de carnaval era
uma coisa espontânea?


D, NEUMA - Não, teve um concur-
so promovido por Zé Ispineli em
Engenho de Dentro. A Portela tinha
muitos blocos, como a Vai Quem
Pode, Estácio tinha, Salgueiro, todos
nesse concurso. Nós ensaiávamos na
rua, e os turistas já vinham assistir ao
samba. Mangueira sempre foi impor-
tante pro turismo.

HZ - A senhora lembra como era a
composição da bateria?


D. NEUMA - Tinha uns 40 homens.
O surdo éra de papel, ou de couro de
gato. Botavam papel embaixo e pu-
nham fogo pra esquentar o instru-
mento, tá entendendo? Carregavam
jornal pro concurso pra poder es-
quentar na hora a bateria.

FD - Como era proibido entrar
bebida na praça, toda cuíca tinha um
preguinho por dentro, com um laço,
pra esconder lá a garrafa.


D. NEUMA - E nós levávamos uma
garrafa dentro das saias. Sem cacha-
ça não se fazia nada.

HZ - Tinha todos os instrumentos
que tem hoje?


D. NEUMA - Não, surdo era um só,
fazendo à marcação. O primeiro sur-
do que a Mangueira teve, de tarracha,
quem deu foi Sílvio Caldas. Antes era
barrica mesmo. Tinha cuíca, pandei-
ro, tamborim, reco-reco, agogó...

HZ - Tarol não?

D. NEUMA - Não. Quando começa-
ram a entrar essas coisas no samba,
reclamamos muito, dizendo que eram
muito barulhentos.

SL - A Mangueira é tradicional
pela sua marcação de bateria, né, que
sempre foi a mesma.


D. NEUMA - Agora querem mudar,
mas quando chega no concurso a
batida é uma só. O surdo é que tem
que dar o primeiro sinal.

HZ - Quem é que tirou essa batida?

D. NEUMA - Batiam atabaque na
macumba, e dali fizeram essa batida.

SL - Quem dirigiu foi sempre seu
Waldomiro?


D. NEUMA - Não, não tinha dire-
tor de bateria. Mangueira só tinha um
diretor que dirigia tudo: Cartola. Di-
retor de harmonia antigamente era
completamente diferente do diretor
de harmonia atualmente. Cartola ti-
nha um diapasão, então a voz das
pastoras entrava dentro da tonalida-
de que ele quisesse. Tirava a tonalida-
de dos homens, das mulheres e da
bateria. Cartola foi um dos melhores
diretores de harmonia que o samba
teve. Foi quem ensinou Paulo da Por-
tela. Tinha um coral que aonde ele
fosse, Mangueira era bem chegada.
Todo mundo quer escutar quem can-
ta bonito, certo, quem tem uma tona-
lidade. Nós cantamos até num navio,
regidos pelo Maestro Stokowski.

SL - Qual era a relação de Cartola
com Noel Rosa?


D. NEUMA - Noel era irmão de
cana do Cartola. Cartola era irmão do
Noel Rosa. Muita gente não conhece
a amizade que se estendia entre eles.
Noel era muito boêmio, e quando
queria descansar, dormir um pouco,
vinha pra Mangueira.

FD - Pra casa da Deolinda.
SL - Primeira esposa do Cartola.


D. NEUMA - Deolinda era tão boa!
Cortava saco de farinha e fazia umas
camisetas sem manga pro Cartola
vestir. Noel chegava, muito bêbado,
ela armava uma bacia d'água, dava
banho nele igual dando numa crian-
ça. Jogava polvilho na bucha: “coita-
dinho, tá tão magrinho!" Ele resmun-
gava: “deixa eu..." (risos) Depois bo-
tava ele na cama de colchão de crina,
debaixo de uma mangueira, e ele
dormia um sonão. Dava um caldo
com batata, e ele acordava bonzinho.
Aí ele ensaiava músicas com as crian-
ças. Cantavam hinos escolares, ensi-
nava música pra elas: “quem é você
que não sabe o que diz - Meu Deus do
céu, que palpite infeliz." Nós grava-
mos com ele aquela música: “pobre
de quem não sofreu nesse mundo / a
dor de um amor profundo / Eu vivo
bem sem amar a ninguém / ser infeliz
é sofrer por alguém.”

MD - O que era a comunidade de
Mangueira, em termos de condições
de vida, nesses anos 30, 40?


D. NEUMA - Nossos problemas
eram poucos naquela época. Sempre
tinham uns caras, cabeças fortes, que
tomavam conta. Seu Júlio, todo mun-
do respeitava mesmo. Não diziam pa-
lavrão na frente dele. Se alguém fa-
lasse (*) perto dele, levava um tapa
na cara. Não aceitava que nenhuma
crianças fizesse malcriação:

MD — Quer dizer que a comunidade
tinha líderes que disciplinavam, como
Geraldo Pereira no Morro de Santo
Antonio?


D. NEUMA - Quando vim morar
em Mangueira, quem mandava era a
família Matos, que tinha dinheiro,
eram donos de biroscas.

HZ - Tinha que buscar água na
fonte, né?


D. NEUMA - É, mas tínhamos um
registro lá embaixo que botava uma
água geladinha, que doía até o dente
na hora de beber. Nós sofríamos mui-
to, mas era um sofrimento gostoso,
ninguém reclamava.
 
HZ - Você estava falando da for-
mação da Mangueira, mas que nessa
época não moravam ainda aqui.
Quando foi mesmo que vieram pra
cá?


D. NEUMA - No dia 4 de novembro
de 1933. Papai dizia: “quero morrer
em Mangueira!” Insistia nisso. Ma-
mãe: “mas não vou morar num par-
dieiro!" "Não, mas quero morrer é
lá!" “Ah, mas eu não vou!" Af Cartola
saiu, procurou casa, achou essa, e
mudamos pra cá. Papai morreu no dia
29 de abril de 1935, dois anos depois.

HZ - Na escola, o que a senhora
fazia?

D. NEUMA - Era uma pastora,
fazia parte do coral. Ajudei a fazer a
campanha pra construir a primeira
sede. Nenhuma criança comia doce,
guardava o dinheiro pra comprar tijo-
lo. Até o pão a gente diminuía de
comer, pra comprar tijolo. Fizemos
um programa no Cassino Atlântico,
pra botar porta e janela.

HZ - Os intelectuais dizem que o
pessoal do morro passa fome pra
comprar sua fantasia, “cumé que po-
de”, que isso é “um absurdo”.


D. NEUMA - É mentira. Você acre-
dita que uma criança com fome joga
futebol o dia inteiro? Uma criança
com fome, ri? As crianças aqui são
bem alimentadas. O que não temos é
preconceito de roupa, usamos às ve-
zes roupas que os outros dão, porque
o bacana veste um vestido duas, três
vezes, depois joga num canto, dá pra
gente. Ninguém aqui passa fome. E
todo mundo estuda, o que é o princi-
pal.

HZ - Mas fazer uma fantasia não
implica em sacrifício?


D. NEUMA - Sacrifício nada, a
gente vai acumulando durante o ano.

SL - Durante algum tempo, a se-
nhora foi o banco das baianas da
Mangueira. Como funcionava isso?


D. NEUMA - Ah, elas guardavam
dinheiro comigo. Antes, não tinha
esse luxo que tem atualmente, não
tinha figuras de Debret nem de Ru-
gendas. Fazíamos aquilo que quería-
mos. A baiana era feita no sábado de
carnaval. Íamos na cidade, compráva-
mos seis metros de cetim, quatro rosa
e dois verde. Voltava pra casa e sen-
tava o pau. De noite a baiana tava
prontinha pra desfilar. O pior era
armar a saia de goma. Às vezes cho-
via e não tinha condições de secar.
Então pegávamos a cera, acendia o
fogo e...

HZ - Esquentava a baiana.

D. NEUMA - Ficava preta, fedendo
a fumaça... a gente queria era ir, não
ficava de jeito nenhum.

SL - Como a senhora vê a prepara-
ção da escola agora?


D. NEUMA - É diferente. Por
exemplo, tem escola de samba que faz
carnê. A Mangueira compra o tecido,
dá uma ajuda, e elas pagam a outra
parte. (pausa) Não gosto nem de falar
do agora, que é tão deprimente, tão
dolorido. O cara que aprende a fazer
um chapéu, ganha nos três dias de
carnaval pra comer durante um ano,
então esquece que carnaval não é pra
quem pode, é pra quem gosta, tá
entendendo. Tó fazendo uma campa-
nha pra Legião Brasileira de Assistên-
cia conseguir chapeleiras pra ensinar
nós do morro a fazer chapéu. Se
entrar em Mangueira, entra nas ou-
tras escolas. Tem que arranjar uns
artesãos pra ensinar os garotos a
fazer sapatos. Que tudo é a maior
bxploração, gente, fico louca de ver!
Um chapéu, Cr$ 15 mil!

MD - Virou uma indústria, né?


D. NEUMA - É uma indústria peri-
gosa! Hoje ele cobra 15 mil, você dá,
ano que vem ele tem vontade de -
cobrar 30 mil. Isso vai acabando com
o carnaval. Nós temos 30 numa ala.
Cada uma gasta 10 metros. Quanto
custa? Cr$ 5 mil o metro. Só dá pra
comprar 50 metros. Quando você vai
buscar o resto, acabou, ou então che-
gou, mas aquilo que era 5 mil passou
pra 8 mil. Acomponente, que sabia
que era 5 mil, diz que estamos rou-
bando. Todo mundo prejudica o car-
haval, ou sabendo, ou ingenuamente,
não sei,

MD - Quantas vezes vocês en-
saiam?

D. NEUMA - Olha, sabe o que
estragou os ensaios da escola de sam-
ba? Condução: a falta de ônibus de
madrugada. O sujeito vem pra ver um
samba, paga um ingresso, aluga uma
mesa, paga cerveja, arranja uma ne-
guinha pra dar uns beijinhos, tem que
pagar uma batatinha, quer fazer
agrado: o troco que ele tinha, já era.
Não tem dinheiro pra táxi.

HZ - Pessoal tem medo de vir a
ensaio na Mangueira porque no via-
duto, passou de determinada hora...

D. NEUMA - É mentira, não existe
isso. Quando vocês chegaram, viram
eEsa porção de carro parado aí na rua.
Todo dia fica esse mundo de carros do
IBGE. Gente do morro mesmo é que
toma conta, Não tem nada. Tem uns
que deixam a porta aberta, outros
deixam as chaves na mão da rapazia-
da, quando chegam encontram o car-
ro como estava.

FD - O IBGE inclusive funciona 24
horas.


D. NEUMA - Os que não têm carro
vão pela ponte pra tomar condução,
sem nenhum problema. O problema é
que não tem condução. Devia ter
ônibus de madrugada, ao menos quin-
ta, sexta e sábado, nesse período de
carnaval. A pessoa acaba sendo obri-
gada a ficar no samba até cinco horas
da manhã. Agora, assalto não tem.
Mangueira dificilmente dá assalto -
coisa que dá em toda parte do mundo
- porque malandro encontra aqui a
barra pesada dos PMs. Temos uns
PMs aqui que conhecem o morro.
Pisou gente que não é da área, os PMs
expulsam. Se bancou o valente, tem
que levar chumbo. Falam em arbitra-
riedade, mas machão tem que levar
chumbo mesmo. Precisamos de tran-
quiilidade. As pessoas acham que aqui
é reduto de marginal, mas quando
dão blitz no morro, aqui não acham.
nada. Todo mundo desce de manhã.
documentadozinho, com a marmiti-
nha debaixo do braço. Os PMs conhe-
cem cada beco. A 17 (17º Delegacia)
não conhece metade do que a PM
conhece, eles nem saltam, passam por
aqui direto.

HZ - Eu queria que a senhora
tontasse mais sobre os primórdios da
Mangueira. A senhora começou a fa-
lar de um concurso, que fol a primeira
vez que a Mangueira desfilou. Com
quem ela se defrontou?


FD - Posso esclarecer? Não foi
propriamente um confronto de blo-
cos, foi um confronto de samba, Não
havia escolas ainda. Só funcionava,
como escola, o Deixa Falar. Desceu o
pessoal do Estácio, com Ismael, o
pessoal da Portela, com Paulo da
Portela, Heitor dos Prazeres, o pes-
soal da Mangueira, e me parece que
veio um grupo da Tijuca, não sei se
Unidos da Tijuca ou Azul e Branca,
com Antenor Gargalhada. Era umã
festa íntima, onde cada um cantava
um ou dois sambas. Zé Ispineli, pes-
soalmente, rei do seu terreiro, esco-
lheu o samba da Portela como tendo
sido o vencedor naquela ocasião. Isso
foi, no dia 20 de janeiro. Em fevereiro,
no carnaval, ele próprio comprou uns
troféus “e entregou na Praça da Esco-
la Benjamim Constant, na-11 de Ju-
nho, o que corréspondia-hoje ao pa-
lanque do juri, o palanque central. O
desfile subia da Central do Brasil pela
Senador Eusébio, contornava a Praça
Onze duas vezes e descia pela Vis-
conde de Itaú. Esse é que era o desfile
da Praça Onze, que só foi disciplinado,
em 32, quando à famíla Rodrigues,
do- Mundo Esportivo, estabeleceu o
primeiro desfile organizado de esco-
las de samba.


HZ - E já tinha esse negócio da
Mangueira atrasar o desfile?


D. NEUMA - A Mangueira atrasou
o desfile em 1935, quando papai mor-
reu. Armaram a escola numa antiga
ponte, que quando fizeram a Getúlio
Vargas, fizeram essa ponte que inau-
guramos no peito, em 1930.

HZ - No peito? Como?

D. NEUMA - A ponte tava sendo
féita pra uma inauguração cheia de
pompa e festa. A gente tinha que
passar pela linha de trem, tinha sem-
pre gente morrendo, então fizeram
uma ponte que dava pra passar até
carro. Quando acabou a Revolução de
30, Getúlio Vargas ia subir num trem
de São Paulo, e queríamos ver ele, o
machão da época. Eu nem sabia quem
era, nem o que tinha feito, mas era
criança, e achava interessante o que
os adultos achavam. Então descemos
e arrombamos a ponte, Tiramos tudo,
inauguramos a ponte, e ficaram os
moradores todos lá em cima vendo
Getúlio Vargas-passar, tirando o cha-
peuzinho pra pente. Também no últi-
mo instante de vida dele, quando o
avião passou, o morro todo desceu e
foi pra lá acenar pra ele, dando adeus,
com lenços brancos.

MD - Nesse ano de 35, quando a
Mangueira atrasou, de quem era o
samba?


D. NEUMA - Carlos Cachaça: “Eu
tenho orgulho de ter nascido aqui no
Brasil / a paz que encerra no seio essa
terra / me obriga a cantar / Enquan-
to eu ouço um grande alvoroço por aí
no universo / quero nestes versos, ó
Pátria querida, teu nome exaltar”. Já
tínhamos cantado esse samba pro
meu pai, mas ele não tinha ouvido
ainda com bateria, nem com a escola
fantasiada. Então a Mangueira for-
mou direitinho, como ia formar na
cidade, e tocou pra ele, que até des- .
maiou. Ficou todo mundo chorando,
aquela ... toda, até que ele recuperou
os sentidos, e aí saiu todo mundo
empolgado pra trazer a vitória. Quan-
do chegamos lá, tinha atrasado tanto
que a luz tava apagada. Mas apaga-
ram na hora que viram a Mangueira
pronta pra entrar. Já tinha começado
o carnaval de sacanagem.

FD - Carnaval organizado era as-
sim


D. NEUMA - É, já vai na mão o
vencedor.

HZ - Quer dizer que naquele ano a
Mangueira não desfilou?


D. NEUMA - Desfilou pro público,
com tudo apagado. Foi aplaudida!
Pela opinião pública, ela era campeo-
níssima do ano!

SL - Qual foi a escola que ganhou?

D. NEUMA - Portela. Já era assim.
Tem sempre um safado que pensa que
tá escondido, mas tem “safado” es-
tampado na cara. Esse chamava Flá-
vio Costa, da União das Escolas de
Samba, a entidade responsável pelo
desfile. Esse homem veio aqui, papai
levantou e gritou: “Vocês são uns
FDP! Mataram a minha escola, aca-
baram comigo, mas ainda tenho for-
ças pra esbofeteá-lo!" Nunca tinha
visto meu pai dar (*) em ninguém,
mas ele levantou, e deu primeiro nes-
se Flávio, uma (*) que os dedos dele
ficaram marcados. E deu então num
Rubens, que tava junto,

HZ - E sua mãe lá com a machadi-
nha?


D. NEUMA - Não, nem mamãe
esperava aquela. Ele ainda falou:
“Agora vocês reagem, que sou um
homem doente, mas ainda sou um
homem!” E a Mangueira tava tão
bonita naquele ano, com um samba
tão lindo! Naquele tempo era samba-
enredo mesmo, que agora não é mais.

SL - Qual é a diferença?

D. NEUMA - O compositor às ve-
zes era analfabeto, mas ia na Bibliote-
ca Nacional, levava um filho que
sabia ler, e procurava saber de tudo.

SL - Pesquisava mesmo.

D. NEUMA - Por isso é que tinha
briga na ala dos compositores com
Cartola e Seu Carlos Cachaça, que
eram mais inteligentes, e sempre se
aprofundavam nas coisas. Na Guerra,
Seu Carlos fez um samba assim: “Tu
és meu Brasil em toda parte / és na
ciência e na arte / portentosa e alta-
neira / Os homens que escreveram
sua história / conquistaram suas gló-
rias / com epopéias triunfais / Eu
quero neste pobre enredo / revivê-los,
glorificando os nomes seus / Elevá-
los ao Panteon / dos grandes imortais
/ pois merecem muito mais”. Mas no
Buraco Quente os caras fizeram um
samba assim: “Lutei / pela vitória do
meu Brasil / a voz do dever me
chamou / varonil e incontinenti / eu
parti pra defender / o meu Brasil / E
foi / com grande prazer / que eu
ergui meu fuzil / sem temer preparei
/ tudo até morrer / pra ver meu Brasil
/ vencer". Ganhou o samba do Carto-
la, feito na porta de um betequim,
com uma melodia linda! Mas tinham
uns caras que tinham voltado da
guerra, mutilados, que choraram,
cantavam o samba da guerra com
lágrimas, foi um drama no morro.
Ficou uma guerra e a Mangueira
desceu o morro muda. Nossa turma
subiu no palanque da avenida can-
tando o samba do Cartola, mas o
grosso da escola não cantou. Quando
chegou bem embaixo do júri, um
desgraçado que ninguém sabe quem
foi gritou assim: “Lutei / pela vitória
do meu Brasil...” Aí todo mundo: “A
voz do dever me chamou”. Arrepiou
todo mundo, o pessoal cantando dois
sambas-enredo, a escola parou. Por
causa disso Cartola se afastou.

SL — E agora, o que você acha dos
sâmbas-enredo?

D. NEUMA - Ah, gente, escola de
samba agora é um crime! Ninguém
disputa samba de terreiro numa qua-
dra. É só samba-enredo que você não
entende nada, a letra e a música são
completamente diferentes, se expres-
sam mal. O negócio deles é uma
gravação. Uma maldita gravação!

MD- Fala-se muito que a Manguei-
ra tem uma cadência tóda própria.
Mas teve um ano que desceu com um
“Obabá” que foi uma desgraça geral.
"Hoje, a ala dos compositores se preo-
cupa em fazer sambas dentro da ca-
dência tradicional?

D. NEUMA - Não.

MD - Mesmo depois daquele fra-
casso?

D. NEUMA - Olha, esse ano eu era
a favor do samba do Darcy, um sam-
ba cadenciado, bonito. O samba que
vai desfilar não é feio, mas achei
muito corrido.

EL - Qual foi o maior camaval da
Mangueira?

D. NEUMA - Olha, prá mim foi
.“Casa Grande & Senzala": (cantarola
a música até chegar ao seguinte tre-
cho, que canta alto, acompanhada de
alguns presentes)
“E nas senzalas as
escravas / dançavam batucando seus
tambores / louvores / louvores / a
esse povo varonil / que ajudou a
construir / a riqueza do nosso Brasil".
Esse samba foi muito gozado porque
era de Cumprido e Pelado. Roberto
Paulino, nosso presidente, era homem
importante, dirigia fábricas, então pra
falar com ele tinha que passar por
telefonista. Um dia chegou alguém lá,
a dona perguntou: “Quem quer falar
com Sr. Roberto?” “Peru”, Anotou lá.
Daqui a pouco chega outro. “A quem
devo anunciar?” “Cumprido”, E daí a
pouco chegou Pelado. Aí ela desespe-
rou, e foi falar com outra secretária:
“Que que eu faço? Chegaram aqui
três homens: Peru, Cumprido e Pela-
do!” (risos gerais) Falou assim: “Ó Dr.
Roberto, chegaram uns homens aqui
procurando o senhor; mas não sei o
nome deles direito...”

SL - A senhora e a Dona Zica,
apesar de serem fundadoras da esco-
la, não interferem nessas mudanças
que consideram negativas, né?


D. NEUMA - Não dá. Não adianta
querer trocar aquilo que a mocidade
quer. Pra se atualizar, viver junto
deles, tem que seguir aquilo que eles
querem. Não dá pra retroceder de
jeito nenhum. Por exemplo, aqui em
casa, adoro a música popular brasilei-
ra, mas tem uma vitrola aqui que de
manhã cedo já tem gente ouvindo,
não posso ouvir as músicas que eu
gosto, mas não posso também brigar
com minhas netas, mesmo elas que-
rendo ouvir esses americanos que
gritam. Vou lá pra cima e deixo elas
ouvindo essa porcaria. Antigamente,
a gente mesmo levava cordas pra
segurar o pessoal no carnaval. Depois
quiseram organizar, só que tudo or-
ganizado demais vira bagunça. Quem
levanta de manhã e já quer arrumar a
casa vai desorganizando a vida. Você
tem que levantar, lavar o rosto, tomar
o golinho de café, bater papo com o
vizinho, aí volta pra dentro de casa e
trabalha tranqúilo, tudo legal. Assim
é o carnaval, a gente saía de manhã
no bloco dos sujos, brincava, pulava,
cantava, chegava em casa com o pé
cheio de bolha, de noite vestia a
fantasia correndo, ia a pé até o Mara-
canã pra tomar o bonde, bebia umas
cachaças em tudo quanto é botequim
que encontrava no caminho, barraca,
birosca, ia se distraindo, você brinca-
va no carnaval... Atualmente, faz
uma fantasia, gasta uma fortuna, só
pra 80 minutos.

HZ - Mas a senhora continua desfl-
lando, né?

D. NEUMA - Continuo! Sou sem
vergonha, né!

EL - Vai de baiana?

D. NEUMA - Não, na ala dos com-
positores. Teve uma época que tinha
uma diretoria muito minha amiga, e
eu, ia de diretoria, mas depois que o
Bira entrou, acabou comigo. Fiquei
tão deslocada que só vou porque sou
sem vergonha. Meu interesse maior
era o Mirim da Mangueira, que é a
continuidade da escola. A Mangueira
precisa dessas crianças, é o futuro
que tá ali na mão deles. Incentivando
eles, tá ajudando a própria escola.
Mas sabe o que fizeram? Me tiraram
do meu lugar. Apareceu uma cachor-
ra que tá ensinando sabe o quê?
Maculelê, uma dança que bate palma,
que pula com pau, nada de samba! As
crianças não sabem sambar! Não tem
passista! Pôxa, quantos desfiles eu fiz
com crianças...

SL - Dona Neuma, a senhora ajuda
também na alfabetização das crian-
ças do morro, né?


D. NEUMA - Agora não ensino
muito mais... É que as crianças iam
pra escola e não aprendiam. Chega-
vam em casa, me davam os livros, eu
ensinava, mas chegavam na escola,
não passavam de lição. Digo; “Meu
Deus, eu ensinei, eles sabem ler!" Um
dia fiquei invocada: peguei um papel
e escrevi uma porção de palavrões.
Botei na mesa, e eles leram direitinho!
(risos) “Menino, o que escrevi aqui?”
''*.*.*.” (mais risos) Outro chegava:
“Olha, você escreveu aqui ''*.*.*.”
Quando enjoaram de palavrão, passei
pros sinônimos. “Vocês sabem o que
são sinônimos? São palavras que si-
gnificam quase à mêsma colsa, que
têm.o mesmo sentido. Por exemplo:
(*). Quantos sinônimos tem: (*)? “Eu
conheço um (*)!” (risos) Outro: “Eu
“conheço "(*)"! (gargalhadas) Depois
- passei pros verbos. Primeira conjuga-
ção: verbo (*) (gargalhadas altíssi-
mas)
. Presente, pretérito perfeito, Im-
perfeito, mais-que-perfeito, fui indo
“até o condicional, que é onde eu
sabia. Ah, mas era uma boa: eu * ria,
tu * rias... aprendiam direitinho! No
fim do ano eram os melhores da
escola!

HZ - Por que a senhora parou de
ensinar?


D. NEUMA - Ah, hoje as crianças
sabem mais do que eu. Tenho uma
neta FDP! Só tem medalhas. Tô com
muita pena dela, estudava num gru-
po, mas tava indo além das outras
alunas, então fizemos uma vaquinha
e pusemos ela no Brasileiro, só que tá
caro prá (*), não tá dando pra ela
continuar.

HZ - Você tem alguma renda?

D. NEUMA - Pensão de funcioná-
ria federal, uma mixaria: Cr$ 3.399. O
pior de tudo é você encarar aquelas
funcionárias do Ministério da Fazen-
da. Mas eu xingo. Xingo! “Vocês es-
tão aí por causa de mim!” De tanto
xingar, consegui mais uma pensão
especial de Cr$ 9.010.

FD - Nesse terreno que sua família
herdou, você está construindo uma
boa residência. Como você chegou a
conseguir isto que tem em termos de
patrimônio?


D. NEUMA - Quando vocês chega-
ram, falei: “É mais importante um:
amigo que milhões no bolso”, E eu
tenho é amigos! Quando eu pedi,
apareceram três arquitetos pra dese-
nhar minha casa. Fiz a casa que eu
quis fazer, dizendo onde eram os
quartos. Quanto vi tava esse casarão,
mas já tavam fazendo. O futuro de
nossos filhos ninguém sabe, cada um
preço que ninguém agúenta, então fiz
um lugar de bem-estar pros meus
netos. Os 18 que criéi não me dão
bola, mas quem sabe amanhã um
deles vai precisar? E não vou ter
coragem de dizer não. Vou amparar a
todos! Aqui em casa, dois quilos de
arroz não dá prum dia, tem que fazer
angu pra dar uma ajuda. Sempre tem
carne, que sou tarada por carne. Deus
me livre meu fogão não ter uma
carne! Não preciso de boas roupas,
bons calçados, jóias, nada disso. No
meu Natal desse ano ganhei arroz,
feijão, porco, peru, isso que me inte-
ressa.

SL - Várias gerações da Mangueira
já moraram na sua casa, né?

D. NEUMA - Criei Nicinho e o filho
dele. Sou madrinha da outra filha
dele. Tinha uma família grande aqui
do lado, com muitos filhos, então
mandavam um dormir aqui.

HZ - A senhora tava falando da
decadência das escolas de samba. Di-
zem que algo que contribuiu bastante
para isso seria a entrada do homém
branco, querendo colocar a sua cultu-
ra.


D. NEUMA - É mentira. O branco
não é brasileiro? Então tem que se-
guir a MPB e tudo que significa Bra-
sil.

HZ - Mas aí é o branco classe-
média, não o branco de morro.


D. NEUMA - Nada disso. Mesmo o
branco de classe média nos ensinou
muita coisa. A cultura brasileira ins-
truiu muito as crianças daqui. Está-
vamos querendo pagar um colégio
pra cinco crianças que tenham vonta-
de de aprender Artes Plásticas, pra
que, mesmo que não fiquem igual a
um Joãozinho Trinta, aprendam o
trabalho que ele faz e pelo qual se
paga uma fortuna. Depois de três
anos de escola, teria um contrato
assinado com a escola, que pagou por
ele, pra fazer o trabalho pro desfile da
escola. Enquanto isso, estaríamos
preparando outro grupo. Tenho certe-
za que daria certo, e que o carnaval
ficaria mais barato. Os próprios car-
navalescos não iam fazer o que fazem
hoje, porque teriam muitos concor-
rentes. Só cobram esses bilhões por-
que são poucos. O mal é o nome que
se dá ao cara. Antigamente, pra en-
trar em escritório de advogado, tinha
que tratar por Sua Excelência. Hoje
as Excelências são os carnavalescos.
Depois ficam: “Tenho um nome a
zelar, não vou fazer carnaval pra uma
escolinha medíocre”. No carnaval, ti-
nham que pensar era no nome do
povo.

FD - Mas essa penetração desses
elementos não seria uma conseqiuên-
cia da entrada do branco classe-
média, como diz o Haroldo, trazendo
toda uma engrenagem para o samba?


D. NEUMÁ - Não é o branco clas-
se-média que traz isso não. Quem traz
são justamente as escolas de samba!
Antigamente, levávamos adereços. A
Portela introduziu alegorias, passou a
contar pontos, e todos tiveram que ir
com alegorias. Aí vieram os nomes
famosos. Tenho uma admiração pelo
Fernando Pamplona. Arlindo Rodri-
gues também é homem de responsabi-
lidade de dentro de um carnaval.
Agora têm Viriato, Joãozinho Trinta,
uma pá de elementos de nome.

FD - Essa gente toda veio da Esco-
la de Belas-Artes, na geração que
seguiu o Pamplona e Maria Augusta.


D. NEUMA - Não tem nada a ver
com os bacanas que entraram no
samba. Essa gente foi chamada por
diretores de escolas de samba pra
participarem das mesmas.

MD - Seria então uma consequên-
cia da concorrência entre as escolas-.
desamba?

D. NEUMA - Sim, mas foram trazi-
dos, convidados. É diferente. O cara
que veio não teve culpa, é igual joga-
dor de futebol, tá no seu time, mas
tem o seu preço.

HZ - Essa história da Mangueira
estar falida, que nem o Brasil, que
diretores de outras escolas iam dar
uma força, isso é boato?


D. NEUMA - A Mangueira real-
mente não tinha dinheiro, mas tem
muitos amigos, que fizeram seu car-
naval no ano passado.

HZ - E esse ano, ela conseguiu
equilibrar as flnancas?


D: NEUMA - Não, ainda depende
desse amigos, que continuam junto
dela.

HZ - A falta de dinheiro não pode
parar a Mangueira?


D. NEUMA - Sinceramente, tenho
medo da destruição da Mangueira,
não por causa de dinheiro, mas pela
situação em que se encontra o com-
ponente. Isso em todas as escolas. O
componente tá fazendo das tripas
coração pra botar um carnaval na rua
à altura daquilo que tem que ser feito,
O mais simples que faça tá custando
uma nota violenta, Se não mudarem
os meios da gene sair, o carnaval vai
acabar. Não só Mangueira, todas vão
acabar. Duvido que continue alguma
escola de samba muito grande.

HZ - A senhora se preocupa com
essa violência que anda na cidade?
Assaltos, roubos, agressões? Qual a
causa disso?


D. NEUMA - Esso é safadeza. Não é
devido ao desemprego, ao cara estar
com fome, precisa-se de muitos traba-
lhadores. Querem ver? Tô construin-
do essa casa. Ninguém quer ser pe-
dreiro. Preferem ficar com fome a
ajudar outro a carregar massa. Quan-
ta obra aí precisando de servente de
pedreiro? Outro dia disseram pra
mim: “Você fala que são felizes, mas
quanta gente debaixo de viaduto, dor-
mindo debaixo de pontes, com fome?”
Respondi: “Porque querem”. Quantas
mulheres precisam de uma cozinhei-
ra, uma lavadeira, alguém pra passar
roupa? Eu acabava com esses mendi-
gos todos, botava eles numa comuni-
dade aí, falava “planta, gente”, apa-
nhava roupa de orfanato, levava pra
eles lavar e passar. Iam trabalhar,
mas iam comer. Ninguém quer nada.
Quando eu tinha meus filhos peque-
nos eu lavei pra fora. Meu marido foi
funcionário do Hospital Central da
Aerondutica durante 26 anos. E pra.
meus filhos estudarem, lavei 18 trou-
xas de roupa por semana. Esses assal-
tos é porque acham facilidade em
roubar, alguém facilita eles. Aqui no
morro, graças a Deus, não temos esse
problema. Minha casa não tem porta
nem janela. E cada barraco tem suas
coisas, de acordo com o crediário que
pagam. Antigamente, a gente não
podia ter, não existia crediário mas
hoje tem, e cada um respeita.

SL - A senhora conheceu seu mari-
do na quadra da Mangueira?


D. NEUMA - É, conheci ele quando
tinha 16 anos. Casei com 19. Pesava
56 quilos. PQP! Ai, que saudade! Eu
tinha aquela atração que as mocinhas
da época davam à turma, né. No
Cassino Atlântico, arranjei um namo-
rado branco e rico, de uma família
italiana que morava no Catete! Mor-
feu Beglioni. Ele vinha atrás de mim
no morro, minha mãe ficava: “Olha,
branco, rico... você vai ser chamada
de negrinha do morro, e ele vai dizer
que tirou você da (*)”. Pensei muito e
falei: “Realmente, é verdade”. Então
o primeiro crioulo que apareceu na
rua namorei, casei, e vivi com ele 31
anos, até ficar viúva. Meu marido foi
a coisa mais bacana que Deus me
deu. Fiquei viúva com 50 anos, e
nunca mais quis saber de marido.
Valeu o casamento.

SL - Como foi as Bodas de Prata?

D. NEUMA - No dia da minhas
Bodas de Prata foi a missa de Sétimo
Dia do meu filho. Tive quatro filhas
mulheres e um homem. Uma menina
morreu com 10 meses, e perdi um
filho com 19 anos. Ficou tuberculoso
e não quis ficar bom. Não era o
destino dele.

HZ - O que teria que acontecer na
escola pra senhora voltar a ter o
mesmo interesse por lá?


D. NEUMA - Raízes. As raízes
estão acabando. Tinham que voltar a
se entrosar com o pessoal, Tinham
que pensar: “Pô, se tivesse um Rai-
mundo de Castro, um Zé Ramos, um
Carlos Cachaça...” Nós sentaríamos
do lado, e seria a força total da
Mangueira. Aí viria seu Djalma Preto,
seu Djalma Arruda, uma rapaziada
nova que está ajudando a escola de
maneira legal, juntava todo mundo, e
seria uma boa. Mas ninguém quer
mais nada.

SL - Ano passado a escola fez um
desfile muito ríspido. A Mangueira
apenas passou. Mas quando o bloco
Balanço da Mangueira desfilou, pare-
cia realmente uma escola de samba. O
Balanço da Mangueira tem muita
gente nova, então não é problema de
dade. Não seria, como Haroldo falou,
a introdução de pessoas estranhas ao
samba na escola?


D. NEUMA - Não...

SL - Como é que a senhora explica
então?


D. NEUMA - Tem coisas que a
gente não pode falar, que aí publicam,
e ferem as outras pessoas. Eu sei O
que destruiu a Mangueira. Foram pe-
quenas coisas que acabaram com a
Mangueira, coisas que feriram muita
gente, inclusive eu.

HZ - Mas pelo amor que a senhora
tem à Mangueira, a senhora devia
aproveitar a oportunidade pra falar
dessas coisas, pra tentar reanimar a
escola.


D. NEUMA - Não...

SL - Porque a turma do Buraco
Quente tava lá firme no Balanço da
Mangueira.


D. NEUMA - Olha, a desgraça disso
tudo chama “samba-enredo”. Antes
era escolhido pelo componente. Ago-
ra quem escolhe é o próprio composi-
tor, que traz ônibus superlotados.

SL - Com pessoas de fora.

D. NEUMA - Que não são da esco-
la. Compram ingressos pra esse pes-
soal, que invade a quadra. O interesse
deles é ganhar o samba-enredo e não
prestigiar a escola.

SL - Dona Neuma, os ensaios da
Mangueira estão ficando vazios, a
ponto de acabarem mais cedo. A
senhora já explicou o problema de
quem vem de fora. Agora, o pessoal
do morro não tá indo à Mangueira?

D. NEUMA - 40% do pessõal do
morro é agora é protestante. Isso pesou
muito.

FD - Protestante não frequenta
nada de samba.


HZ - Mas quem vai ganhar o car-
naval de 83?

D. NEUMA - A Mangueira.

EL - Qual o enredo desse ano?

D. NEUMA - "Verde que te quero
Rosa, Semente Viva do Samba." É um
apelo ao pessoal lá de cima, os man-
gueirenses que já foram, pra olhar
qui por nós. Precisamos mesmo dessa
Vitória, sabe.

FD - Olha, eu acho que vocês
falaram pouco sobre a influência da
Dona Neuma como líder comunitária.


HZ - Com es eleições, sua casa
deve ter ficado mais chela ainda, né.
A senhora apoiou algum candidato?


D. NEUMA - Paulo Alencar, o mé-
dico da comunidade.

MD - Elegeu-se?


D. NEUMA - E quem do PMDB
elegeu? Só o Sérgio Cabral mesmo.






























HZ - A senhora tem fé no Governo
Brizola?

D. NEUMA - Olha, duas coisas que
não gosto na vida: dinheiro e mentira.
Acho o Brizola um mentiroso. Ofere-
ceu troço que vai ser impossível dele
fazer. Disse que ninguém vai pagar
passagem de ônibus. Se eu entrar no
ônibus e não pagar, eu vou é ser
presa. Disse que não vou pagar mais
imposto de água, esgoto, luz, não vou
pagar nada, e agora quero ver. Gosto
da realidade das coisas. Tinha que ser
um governador que fosse eleito sem
ter que prometer nada impossível.
Não sou política, não gosto de políti-
ca, mas tô sentindo que tá pegando
mal às pampas.

MD - Quem lhe deu esse título de
Primeira Dama da Mangueira?


D. NEUMA - A imprensa. Um dia
estavam aqui em casa Valcir Araújo e
Haroldo Bonifácio, almoçando comi-
go. Recebi um telefonema da casa de
dona Tereza Goulart. Pensei que fos-
se trote. Uma mulher dessas ia ligar
pra mim pra que, pô? “Neuma, eu
queria assitir o samba da Mangueira,
mas tá chuviscando, e me disseram
que é ao descoberto. Se chover, vai
ter samba?” Continuei achando que
era trote. “Neuma, vou te dar o meu
telefone particular, aí você dá uma
ligada pra mim se realmente houver o
ensaio. Mas olha, vou sozinha no meu
carro, não quero que tenha festas
nem aparatos me esperando.”

MD - João Goulart era ministro do
Trabalho?

D. NEUMA - Não, era Presidente
da República! Ela continuou: ''No
outro carro vão minha secretária e o
Denner”. Então fui contar pro Harol-
do o trote que levei, só que ele disse:
“Ô Neuma, isso é o telefone dela
mesmo”. Seis horas, céu de estrela,
telefonei pra mulher. Quando ela con-
firmou, liguei pro pessoal de Olaria
que dava o serviço no morro: “Deteti-
ve Neto, a gente recebeu um telefone-
ma assim-assim, a moça diz que vem,
eu não queria que vocês parassem o
carro na porta da escola, pra não
pegar mal. Pôem do lado, escondido.
E quando ela chegar, encosta o pes-|'
soal, pra não ficar pedindo”. (chegada
de Terezinha, destaque da Manguel-
ra, Neuma gesticula para um banco)

Senta aí que já vou te atender, (ajeita
a roupa)
Tô suando pra (*). Mas aí ela
chegou, com um vestido simples, ca-
belinho amarrado, uma sadalinha,
sem pintura. Simples. Na porta per-|.
guntou: “Quanto que vou pagar?” O
rapaz falou: “Dama não paga”.
“Qualquer dama?” “Claro”. “Ah,
pensei que fosse só eu”. Só assim].
descobrimos que essa era a Dona
Teresa Goulart. Ela entrou, botamos
ela no palanque, tomou leite de onça
à vontade, sambou a noite toda. Ti-
nha ido lá pra brincar. Mas Haroldo e
Valcir, que sabiam da coisa, ligaram
pra imprensa, chegaram jornalistas, e
na segunda saiu em todos os jornais
“A Primeira Dama do País recebida
condignamente pela Primeira Dama
do Samba”, Aí fiquei com esse título,
sem ter marido presidente nem
nenhuma.

HZ - O pessoal do morro gostou?

D. NEUMA - Bem, todo lugar tem
gente que não aceita. Tem inveja, né.

FD - Mas quando veio o samba do
Sérgio Cabral ninguém mais teve dú-
vidas.


D. NEUMA - É bom viver assim.
Gosto de ser alegre. Têm coisas que
me comovem, boto lágrimas de croco-
dilo pra fora, seguro as outras pra não
descerem. Não sei ser triste. Não sei
visitar doente nem ver defunto. Fico
(*) Quando é homem mesmo, digo:
“Por que? Tanto (*) aí, foi ir você"!

(A entrevista termina bruscamente.
Chega um ônibus da Fundação Esta-
dual de Museus que levou um grupo
de crianças da Mangueira para uma
tarde de recreação no Museu do 1
Reinado, em São Cristóvão. A confu-
são foi enorme. Como sempre, eram
muitos os candidatos. Dona Neuma é
obrigada a se meter na fila e tentar
dar um pouco de ordem. E o faz no
seu melhor estilo: dando empurrões e
só não chamando as crianças de san-
tas).